Atualizado em 25 Junho, 2022

Há artistas com uma visão tão luminosa do mundo, que nos emocionam até aos ossos. Vamos ao coração da Beira Baixa descobrir um mestre assim? De seu nome Cargaleiro

Sábado de manhã. A Protecção Civil decretou alerta vermelho para vários distritos, por causa do mau tempo e fortes ventos. Mas, ainda assim, houve quem se tenha metido no carro, rumo à A23, para visitar uns amigos em Castelo Branco. O pretexto serviu perfeitamente para conhecer um lugar há muito cobiçado: o Museu Cargaleiro.

Quando vimos uma árvore a voar na auto-estrada (exagero, era apenas um ramo), ainda sentimos uma pontada de arrependimento. Mas metade do caminho estava feito…

O Museu Cargaleiro ocupa dois edifícios, um palacete do século XVIII  chamado Solar dos Cavaleiros e uma estrutura contemporâneo, muito perto da Praça Velha. Aqui se expõe não apenas peças do artista, mas também de outros artistas e amigos que fazem parte de sua colecção, nomeadamente inúmeros exemplares da chamada “cerâmica ratinha” (peças de uso diário dos beirões) e “cerâmica Triana”, que o mestre colecionou.

A exposição está organizada de uma forma muito interessante, permitindo perceber um pouco sobre a vida do autor, a sua ligação à Beira Baixa, as diferentes fontes de inspiração e fases criativas. Em frente ao museu, fica um pequeno terreiro que parece perfeito para correr, ler, descansar. Não hoje, que as rajadas de vento partem guarda-chuvas.

exterior do Museu Cargaleiro
© Câmara Municipal de Castelo Branco

Interior do Museu Cargaleiro

Comprado o bilhete, entrámos no espaço do mestre Cargaleiro (edifício contemporâneo) e, literalmente, esquecemos a tempestade. As notas de música clássica, bem baixinha, envolveram-nos no mundo mágico. Um universo de cores e geometrias deste artista beirão, com ampla obra de pintura, cerâmica, azulejaria e tapeçaria.

À entrada, uma porta prendeu logo a minha atenção. Linda, linda, linda. O mestre pegou numa porta velha e criou algo realmente belo, inserindo os nomes das freguesias de Castelo Branco, cor e alegria. Chamou-lhe “A porta da vizinha que nunca conheci”. Outras obras pregaram-me igualmente ao chão. Gosto em particular das suas cidades geométricas; embora já as conhecesse, não me canso de as olhar.

O meu pequeno aventureiro não espera por nós, quer ver tudo e rápido. Normalmente, o meu marido acompanha-o, enquanto eu desfruto dos museus com calma. Mas hoje, algo estranho acontece. O Miguel está, como eu, enfeitiçado pela arte que se revela em cada esquina.

It´s a kind of magic!

obras do mestre Cargaleiro
A porta que me apaixonou (esq.) e Ribatejo – flores e azulejos (dir.)

Valeu-nos a simpatia da Cláudia, colaboradora do museu, que guiou o Pedrito ao longo dos três pisos. Fez-lhe perguntas, apontando as primeiras peças que Manuel Cargaleiro criou, com os restos de barro que um oleiro lhe dava, no seu caminho entre a casa e a escola.

Quem é Cargaleiro?

Quem é este homem já homenageado por dois Presidentes da República e distinguido com o grau de “Officier des Arts et des Lettres” pelo governo francês? Que tem medalhas de ouro de várias cidades portuguesas e dá o nome a uma escola secundária no Seixal? Quem é este artista de quem a Fundação Calouste Gulbenkian anda a comprar obras umas atrás das outras (terão já cerca de 75)?

Manuel Cargaleiro nasceu no distrito de Castelo Branco, mais propriamente em Vila Velha de Ródão. Ali passou todas as férias da sua infância apesar da família se ter fixado no Monte da Caparica. As suas raízes beirãs estão bem marcadas na sua obra, apesar de outras influências, nomeadamente as colchas de patchwork da sua mãe.

Com um atelier na Caparica e outro em Salermo (Itália), onde foi criado o Museo Artistico Industriale Manuel Cargaleiro, o mestre é reconhecido internacionalmente! Dele diz Siza Vieira:

outras obras de Cargaleiro
Cargaleiro na estação do Metro de Champs Elysées-Clémenceau  (Paris).

“Estou convicto de que daqui a muitos anos, quando já não o pudermos anotar, muita coisa hoje celebrada estará coberta de pó, irrelevante ou materialmente destruída pelo tempo. Não uma obra do Manuel Cargaleiro”.

Cada uma das suas peças tem poesia mas, num certo óleo sobre tela, esta sobressai com todas as letras: Vou inventar uma flor / Para por no teu cabelo / Uma flor com asas de lume / Donde em vez de perfume / Saiam sons de violoncelo (Vou inventar uma flor, 1991).

Para além da grandes obras de Manuel Cargaleiro, no edifício principal encontra ainda peças fabulosas de outros autores como Cecília de Sousa ou Pablo Picasso.

Quase duas horas depois, banhados pela inspiração de Cargaleiro, saímos novamente para a rua, não sem antes o meu marido querer rever algumas telas! Verdade! E, para nosso espanto, a tarde corre serena, sem as fúrias tempestuosas de antes. Acho que foi a alegria do mestre que contagiou o S. Pedro.