Atualizado em 5 Fevereiro, 2021

A expressão latina, que pode ser traduzida como “a mãe que alimenta ou nutre” é hoje utilizada como sinónimo de Academia. Mas um livro é também uma mãe carinhosa que nos alimenta. E há quem defenda que os livros têm alma…

Hoje viajamos até Barcelona. Não a Barcelona de Gaudí, da Sagrada Família e dos recordes turísticos. Hoje visitamos a Barcelona de Carlos Ruiz Zafón, o escritor que se instalou em Los Angeles há mais de duas décadas mas cujo coração (e enredo) permanece na capital da Catalunha.

Zafón lançou já três ou quatro títulos com Barcelona como cenário e, em todos eles, a cidade parece um lugar sinistro, algo terrífico, quase sobrenatural. A Sombra do Vento será a mais conhecida e também a mais saborosa dessas obras.

A história transporta-nos para uma Barcelona da primeira metade do século XX, traumatizada pela Guerra Civil Espanhola, pela cólera e a II Guerra Mundial. São feridas de difícil cicatrização, escusado será dizer.

A família Sempere, proprietária de uma livraria modesta na Rua de Santa Ana, está no centro desta trama cujo estilo, diz a crítica, é uma mistura da aventura cavalheiresca de Dumas, da novela gótica e sombria de Allan Poe e dos folhetins amorosos de Victor Hugo.

Mas os protagonistas são mesmo os livros que, segundo o pai Sempere, têm alma. “A alma de quem o escreveu e a alma dos que o leram e viveram e sonharam com ele. Cada vez que um livro muda de mãos, cada vez que alguém desliza o olhar pelas suas páginas, o seu espírito cresce e torna-se forte” (A Sombra do Vento, p. 14).

Este paladino dos livros leva o seu filho, numa madrugada em que o pequeno Daniel acorda a chorar por não se lembrar do rosto da sua mãe, até a um lugar misterioso, que cheira a papel velho, a pó e magia. Trata-se do Cemitério dos Livros Esquecidos, que acolhe todos os livros olvidados pela humanidade! Só a descrição já faz o coração de um amante de livros bater mais forte.

Neste cemitério bibliográfico, Daniel Sempere escolhe um livro para se tornar o seu guardião, prometendo defendê-lo de tudo e todos. Mas que fazer quando a obra que é suposto defendermos nos arrasta para um rodilho de perigos e mistérios? O que pensar quando somos perseguidos por uma personagem do próprio livro?

Nas obras de Záfon, o Parque Güell tem um aspecto macabro.

Não desvendarei o enredo, para não estragar o prazer de uma futura leitura. Mas tenho que mencionar as minhas personagens preferidas, a saber, a peluda e crédula Bernarda, don Frederico (o relojoeiro que se traveste na calada da noite). Há ainda o mendigo com nome de toureiro – Fermín Romero de Torres – que os Sempere resgatam da rua.

E, por fim, o pedante don Gustavo Barceló, perpetuamente agarrado a um cachimbo apagado e a um monóculo que não tira nem na intimidade da retrete, que se considera o último dos românticos, se diz parente de lorde Byron e destila “uma oratória capaz de aniquilar moscas em voo”.

A prosa de Zafón é digna dos clássicos e ainda que os diálogos sejam pouco verosímeis, não são por isso menos deliciosos.

Esta amostra revela a filosofia de bolso que o nosso Fermín está sempre pronto a partilhar. Não seria magnífico conhecer alguém que nos falasse assim?

Voltamos a encontrar o cemitério dos livros esquecidos, a família Sempere e o erudito Barceló em O Jogo do Anjo obra que, confesso, não me impressionou em parte por causa do desfecho, demasiado rebuscado e pretensioso. Ainda que menos bem conseguido, esta segunda obra é igualmente um hino aos livros e aos escritores.

Vocês acreditam que os livros têm alma?

Que tal viajarem pela prosa de Gabriel García Márquez ou Dave Doling que escreveu sobre Guernica?