Atualizado em 6 Janeiro, 2021
Há exactamente um ano, Muxima recebia a promessa de se tornar o primeiro santuário nacional de Angola. Fomos conhecer o maior centro mariano da África subsaariana
“Mamã Muxima”. “Mamã do coração”, em kimbundo. Este tratamento carinhoso à Virgem encerra um universo de afectos. De facto, este é o santuário mais querido dos angolanos, que acorrem em peregrinação nos primeiros dias de Setembro, deixando a pequena vila a rebentar pelas costuras (a festa atrai mais de um milhão de pessoas, segundo os jornais).
Chegámos às margens do Kwanza no primeiro dia de Janeiro, numa manhã abençoada com chuva. A aldeia ganhava vida devagar, os angolanos iam sacudindo os restos da festa da passagem do ano sem pressas. De resto, a Muxima é muito pacata, se recordarmos o trânsito furioso que deixámos em Luanda há cerca de 130 km.
Subimos até ao forte, para apreciar a vista magnífica sobre o rio. Curiosamente, muitas oferendas à Mamã Muxima são colocadas à porta da fortaleza. Foi aqui que encontrei uma mulher de joelhos, imersa na sua fé. Lançou-me um olhar, a curiosidade motivou um segundo relance, mas logo voltou às suas preces.
Pouco depois, chegavam os miúdos no rasto dos turistas e eu meti conversa com o Sélvio, o Afonso e o Nelson (entre os 7 e os 10 anos). Responderam-me sempre com frases concisas, tímidos sins e nãos entrecortados com risinhos envergonhados. Despedimo-nos mas acabaríamos por reencontrar os rapazes pouco depois, junto à Igreja. A nossa visita devia ser o acontecimento mais excitante daquela manhã morna, ou talvez esperassem ganhar mais alguns biscoitos.
Os portugueses chegaram à vila de Muxima em 1581. Ao pequeno posto militar seguiu-se a construção de uma fortaleza (que serviu de prisão) e da Igreja de Nossa Senhora da Conceição , que terá sido fundada em 1599 por Baltazar Rebelo de Aragão. O conjunto foi apresentado à Unesco nos anos noventa, mas nunca chegou a ser classificado, o que é pena, já que poderia contribuir para a conservação deste lugar místico, único em Angola.
Uma idosa, de idade indefinida, descansa junto à sombra da Igreja. Sento-me ao pé dela, para saber que mora em N’Dalatando e que veio agradecer à Mamã Muxima ter vivido para ver um novo ano.
“Isso é na estrada para Malanje?” – pergunto, recordando uma viagem para aqueles lados (aqui).
“Não sei, menina. Tem que perguntar a essas pessoas, viemos todos de machimbombo” – sorrio, surpresa. Ela não parece minimamente incomodada por não ter qualquer noção geográfica do seu país. Será mais importante as suas dores de cabeça, a tensão e as outras maleitas da idade, das quais fala repetidamente.
“Se pedirmos algo à Mamã Muxima, mas assim com muita fé, ela nos atende“ – lança-me, à laia de conselho.
A devoção à Virgem da Muxima é antiga e ganhou um novo ímpeto no século XIX, quando a região foi gravemente afectada pela doença do sono, que dizimou populações inteiras. Hoje, como naquela época, todas as angústias e desejos são lançados à mamã do coração. Os crentes conversam com a imagem, riem-se com ela, zangam-se e ralham, como se fosse uma velha amiga. E pedem-lhe de tudo: para curar a infertilidade, para terem sucesso nos negócios, para trazer chuva…
Em breve, a vila vai ganhar outra relevância com a construção de uma gigante basílica, com capacidade para 4.600 pessoas sentadas. Nessa altura, será elevada à categoria de santuário nacional (notícia aqui).
Em 2009, a maqueta do futuro templo, da autoria do arquitecto e artista plástico Júlio Quaresma, foi apresentada ao Papa Bento XVI, numa cerimónia no palácio presidencial.
A nova igreja deve ser construída em frente à antiga, da qual será separada por uma praça geométrica capaz de acolher 120 mil peregrinos. Mas o projecto (de cerca de 40 milhões de euros) deve estender-se a toda a vila, com uma escola, um posto de polícia, um centro de saúde, um hotel, uma zona comercial, um parque de campismo, rede eléctrica e saneamento…
Ainda que muitas das infraestruturas sejam muito necessárias, pergunto-me se a pequena vila da Muxima não perderá “coração” quando tudo estiver pronto, lá para 2020.
34 Comentários
Querida Ruthia
Gostei muito desta reportagem acerca de um local de que eu nunca tinha ouvido falar, mas que tem muitas semelhanças com muitos outros que conheci nesse abençoado país.
É certo que "a fé é que nos salva" e esse povo parece ter uma fé inabalável na sua Muxima.
Esperemos que a tal construção do santuário não vá tirar veracidade a uma fé tão genuína.
Às vezes o progresso tem as suas desvantagens…
Votos de um Domingo feliz
Beijinhos
MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS
Acho difícil conservar as pequenas tradições e, ao mesmo tempo, desenvolver o turismo religioso. Quando um vem, o outro se perde. Tem sido assim no mundo todo…
Concordo, Marta. O santuário de Fátima é prova disso, nem queira saber como estão os preços para a visita do Papa.
Acho que o principal objectivo é dar melhores condições aos peregrinos que vão a Muxima, já que muitos acampam ali durante alguns dias. Veremos o que acontece
Postagem magnífica, como sempre!!!!Linda inspiração!!!
Um grande abraço, Marie.
Visitar esse santuário em Angola virtualmente, tendo um guia como você, Ruthia,
é como se lá eu estivesse! Valeu muito!
Lembro dos posts anteriores sobre Angola. Nunca fui à Muxima. Nunca se proporcionou. E agora só se fosse em modo virtual, ou através das suas viagens.
Um abraço e uma boa seman
Que bela informação Ruthia, a Africa tem mesmo os mistérios e encantos que você belamente nos trás. Creio como você que se perderá muito o vilarejo com as melhorias de infraestrutura para atender o turismo.Mas também é preciso seguir e fazer sobreviver a população local com geração de mais trabalho.
Amei as postagem.
Abraços com carinho.
Bjs de paz.
Deve ter sido mais uma experiência maravilhosa e realmente os nativos, pouco ou nada sabem do seu lugar…Informções? Cada uma!!! rs Obrigadão pelo carinho por lá! bjs praianos,chica
Gostei bastante deste trabalho e gostei de visitar este santuário em Angola.
Um abraço e boa semana.
Andarilhar || Dedais de Francisco e Idalisa || Livros-Autografados
Olá! Sou Anabela, do blog anabelajardim.blogspot.com.br, escrevo sobre Minas Gerais, gosto de registrar a história e a cultura do lugar onde nasci. Cheguei aqui através do blog "na cadeirinha de arruar". Angola tem coisas em comum com a minha terra. Espero podermos trocar muitas informações. Até breve!
Olá Anabela e bem vinda. Sou apaixonada por MG e, em particular, por Inhotim. Irei espreitar o seu cantinho, com toda a certeza!
Abraço
imagino que após a construção do santuário, deverá ser comparada ao Nossa Senhora Aparecida aqui no Brasil, onde há constante peregrinação de fiéis. O turismo religioso ganha adeptos dia após dia e é bem interessante, ainda mais quando mostra a cultura de um povo.
bjs querida amiga
Maravilha! Que relato emocionante! São essas experiências que me fazem gostar tanto de viajar! Parabéns!
Obrigada Alessandra, seja bem vinda aO Berço, viajante!
Acredita que não conhecia? É uma pena que experiências tão tradicionais como essa, são pouco divulgadas. Sei que envolve muito do turismo religioso e não são todas as pessoas que entende! Mas adorei sua experiência. Lindo!
Talvez seja tão genuína precisamente por ser pouco turística, não concorda?
Muito obrigada pela sua presença e amável comentário
Lindo ler um post inspirador como esse.Mesmo não conhecendo a cultura e devoções de Angola, o texto é tão sensível que nos leva para a história da região.
Grata Nanne. A grande riqueza que as viagens nos proporcionam é mesmo um olhar diferente sobre o mundo que nos rodeia.
Que inspiração!
Concordo com você em relação as melhorias no turismo religioso, que um pouco das tradições irão se perder com o passar do tempo. Ganha por um lado, perde do outro. Tem sido assim em todos os aspectos.
Um abraço e parabéns pelo post diferente e cultural.
Muito obrigada ao casal viajante. É preciso minimizar as desvantagens e potenciar as vantagens!
Abraço
Visitar lugares de fé é sempre emocionante né, não importa sua crença. Ver a fé das pessoas é muito especial.
Lindo texto!
Olá Camila, seja bem vinda aO Berço. Espero que se sinta em casa, por aqui. A fé é algo comovente e há lugares como a Muxima que simplesmente atraem as pessoas
que texto tão inspirador, nunca tinha ouvido falar sobre essa localidade, realmente muito interessante como cada pessoa mostra a sua fé, a primeira foto é de uma emoção sem tamanho, abraços
Angola não é um lugar muito turístico, por variadíssimas razões (burocracia do visto, alguma insegurança, falta de infraestruturas hoteleiras) daí não ser um destino particularmente explorado pelos blogs de viagens
Ruthia
Que texto e fotos lindas! Nunca havia lido sobre esse local, mas algo que realmente me impressiona é a fé e a devoção das pessoas (algo que eu tenho apenas em mim)!
Abraços,
Parabéns pelo artigo, pelos vistos Angola tem um grande potencial, mas infelizmente ainda não está divulgado. Gostei do enquadramento histórico.
Está pouco divulgado porque os turistas são muito poucos. Ainda não é um país tourism friendly. Mas um passinho de cada vez, é um país muito jovem
Parabéns pelo post, que experiência bacana. Deve ter sido uma experiência incrível. As fotos estão lindas e a pesquisa muito bem feita. 😉
Adoro quando um blog me leva a lugares que nunca fui ou sequer sabia da existência!
Teu texto faz viajar junto, adorei cada linha e amei as imagens! A primeira, da mulher imersa em sua fé é linda!
Não é? Eu também adoro "sair da caixa" e ver coisas novas. E chegar a um lugar que não esteja pejado de turistas, que maravilha!
Nunca estive em Angola, mas ouvi muitas histórias de lá através de amigos que lá estiveram como soldados. Por isso, gostei de te acompanhar nesta viagem a Muxima.
Ruthia, bom resto de domingo e boa semana.
Beijo.
Olá Ruthia!
Estou encantada com esta tua postagem, incluindo seu blog. Quanta riqueza, por aqui. E quanto aprendizado, através de seu olhar.
Um prazer em conhecê-la. Temos amigos em comum aqui pela blogosfera.
Beijinhos e abraços do Brasil.
Olá Maria Gloria, seja bem vinda. Grata pela sua visita e pelo seu amável comentário. Vou lá conferir que amigos temos em comum 😉
Beijinho
Obrigado pela visitinha, igualmente bem-vinda, beijinhos.