Atualizado em 12 Abril, 2021
Era Agosto quando visitei pela primeira vez a China, para um curso de Verão. Em teoria, conhecia bem o país, mas ainda assim a realidade ultrapassou as expectativas. Aprender chinês é sempre um bom argumento para viajar
Acordo pouco depois do lusco-fusco da rua, naquele escasso hiato em que nem as aves perturbam o silêncio. A minha cama tem um colchão com apenas dois ou três centímetros mas, surpreendentemente, nada me dói. Começo a entender esta forma tão asiática de dormir.
Uma hora depois, desço do dormitório e o Nǐ hăo (你好) já me sai como um hábito há muito adquirido, tal como a resposta mecânica da porteira. A humidade quente cola-se-me à pele, à medida que caminho para um pequeno-almoço de arroz, noodles, sopa, ovos, pães (todos eles doces) e leite de soja a ferver, que uso para preparar um Nescafé porque não curei a minha ânsia de cafeína.
Dois ou três dias foram suficientes para ultrapassar o jetlag e a rotina instalou-se tão rapidamente que parece que aterrei em Hong Kong, por entre chuva e trovões, há uma eternidade. Ou é o tempo, maroto, a pregar partidas a uma mãe roída de saudades. O pequeno explorador não me pôde acompanhar neste curso de Verão, mas é tão difícil ter o coração a bater a meio planeta de distância!
Nestes pensamentos me perco, enquanto contemplo as montanhas que rodeiam o campus, a floresta exuberante já tão viva de sons, os lagos com nenúfares e lótus. Até ser arrancada dos meus devaneios pelos colegas que vão chegando para a aula de chinês. Eles são alemães, espanhóis, coreanos, russos, ucranianos e israelitas. Há apenas duas aves raras no grupo: um inglês e uma portuguesa (adivinhem se conhecem).
Isto resulta numa cacofonia de línguas tão interessante, como se estivéssemos a construir uma minúscula torre de Babel. Claro, o inglês sobressai como língua franca, até porque muitos estão a contactar com o mandarim pela primeira vez.
Mais do que uma oportunidade de aperfeiçoar o meu incipiente e tímido chinês, esta foi uma viagem para compreender outra forma de ver o mundo, para conhecer melhor um “outro” que adora selfies. Um outro que fica tão deslumbrado com estes aliens estrangeiros que pede para os fotografar, que vive sem facebook mas nem por isso deixa de ter redes sociais.
E isso (compreender, conhecer) pressupõe comer com pauzinhos, ir a uma KTV party*, regatear no mercado aquela dragon fruit que queria mesmo provar (太贵了, tài guì le). Significa arder um incenso num templo, comer coisas que não consigo identificar, algumas muito amargas, outras muito picantes.
Sei que levantei apenas uma pontinha do véu deste país gigante, de grandeza continental, até porque Cantão é uma região muito particular. Mas sobre as idiossincrasias locais falarei num próximo capítulo.
Zài jiàn (再见)!
* KTV ou karaoke é um passatempo importado do Japão, muito popular na China. Basicamente, alguns amigos ocupam uma sala por umas horas para cantar, beber e conversar.
25 Comentários
Adorei. Gosto quando escreves assim mas na 1°pessoa. Quero mais. Bjnho
Muito contente por teres comentado pela primeira vez aqui no blog, apesar do feedback que sempre foste dando pessoalmente. Obrigada e beijinhos
Pelo que vejo na foto, dragon fruit é o que por aqui chamam "pitaia"…
Existe no Brasil? Nunca vi por aí… Por fora, a casca lembra escamas, daí a alusão ao dragão. Por dentro, parece um kiwi, mas branco. O sabor não é muito forte.
Mais uma vez uma boa reportagem, esta, do outro lado do mundo. Adorei. Pena que o filhote não tenha podido ir.
Um abraço e bom fim de semana
nossa Ruthia, jamais pensei que fosse para tão longe… a fruta eu não conheço aqui no Brasil… nunca a vi… guria, muita coisa diferente,mas acima de tudo, estou louca para te ouvir falando chinês, com este teu sotaque tão melodioso e lindo português…. deve ser uma mistura, no mínimo, interessante e curiosa!… bjs amiga querida, ansiosa para ler a segunda parte!
O meu chinês ainda é muito tímido, resume-se a algumas frases simples. Mas já deu para regatear nos mercados, ahah!
Beijos, amiga Adriana
Olá, Ruthia!
Quanta novidade, admiro sua coragem, é mesmo uma pessoa com espírito de aventuras, próprios de nossos antepassados portugueses.
Já não sou tão arrojada, prefiro meu canto, minha língua, não saio muito da minha zona de conforto. Parabéns pelas conquistas, obrigada, abraços carinhosos
Maria Teresa
Olá Teresa, não consigo imaginar como seria no tempo dos nossos antepassados, quando não havia GPS, nenhum meio para comunicar noutra língua (agora temos uma app no telemóvel que ajuda no indispensável), a viagem durava meses… isso sim era uma aventura desmesurada. A minha foi apenas uma aventurazinha, com peso e medida 🙂
Beijinho
Uau, Ruthia, que viagem interessante!!!!
Nunca antes cogitei ir à China ou à India…. Mas depois que vi um documentário sobre as montanhas coloridas da China, na província de Gansu, confesso que este país já não é mais tão distante para mim! E você é corajosa, hein! Fazer aula de mandarim, no próprio país, como um monte estrangeiro, cada qual falando sua língua….loucura total, e ao mesmo tempo, instigante!!!
Beijinhos
Bia
http://www.biaviagemambiental.blogspot.com
Bia, não foi uma completa loucura, porque já tinha começado a aprender mandarim em Portugal. Quando fui para a China, já tinha oito meses de aprendizagem. Até porque, na região para onde fui, muito poucas pessoas falam inglês.
A China tem muitos lugares maravilhosos, mas ainda só pude conhecer um bocadinho do sul.
Beijinhos, obrigada pela sua presença sempre querida
A gente fica tão à vontade com o seu relato, entusiasmado e coloquial, que é como se estivéssemos nessa extraordinária viagem (quem dera!!!)…é como me sinto! Que venha logo, o segundo capítulo!
Beijo!
Uma experiência bem diferente, mas imagino tuas saudades! bjs, chica
Estou a adorar os seus posts, especialmente que estou a pensar (talvez) ir à China nos próximos anos. Fico ansiosa por mais. Beijinhos.
http://www.viajarso.blogspot.com
P.S- e sim, é preciso coragem para viajar para tão longe.
Mais uma aventura à Ruthia! Ansioso por ver o que se segue. Macau também deves ter ido e deves ter adorado. beijinhos
Sim, claro, fui a Macau e foi uma experiência interessante.
O que é isso de uma aventura à Ruthia? Isso é bom?
Beijinhos
Já tinha lido e comentado este texto. Voltei para responder ao seu comentário no Sexta. Por muito absurda que hoje , pareça a história é absolutamente verídica. O Manuel era meu pai, e por causa daquelas botas, e da deserção que se seguiu, acabou por ser preso em 62, tinha eu 15 anos, e esteve quase a acabar com a vida.
Um abraço e uma óptima semana
Oi Ruthia ainda bem que temos uma corajosa ave para voar para tão longe de nos levar em sua mala. Mas menina, este negocio das gastronomia minuscula me assusta,kkk.
É um mundo todo diferente mesmo como lemos por ai.
Uma boa aventura amiga e vamos aprendendo e captando dicas.
Uma linda semana a voces.
Meu abraço de paz e luz.
Bju de paz na linda semana.
Na China o karaoke é levado a sério. Existem campeonatos, não é? Muito bom!
Pena Pedrinho não estar por perto. Ele se encantaria, com certeza.
Beijos!
Ruthia,
Estou muito curiosa para ler mais o que voce tem a dizer sobre esta viagem.
Sobre Karaoke, acredite, aqui já teve febre, depois votou e eu sempre fui tao timida para cantar.
Bjs
Olá Sissym. O KTV é amigo dos tímidos, porque se trata de salas privadas, para grupos de amigos. Assim não tem aquela vergonha de cantar em frente a desconhecidos. Os amigos passam lá horas, a conversar, beber e cantar. Cada um mais desafinado que o outro 🙂
Nǐ hăo, minha rica menina!
Pois é, nós achamo-los exóticos, mas eles é que pedem para vos fotografar 🙂
(Agora fiquei a cismar nos pãezinhos do vosso pequeno-almoço)
Ah, já me esquecia: as lentilhas que uso são "enfrascadas", logo já estão cozidas 🙂
Beijocas
Oi linda!!!
Amei seu texto!!! Muito legal imaginar um lugar guiada por suas palavras!!! Parabéns!! E me conta, você melhorou seu mandarim? rsrs
Xero, do nordeste do Brasil!!!
Minha querida, seja muito bem vinda!!! O meu mandarim não melhorou grandemente, mas valeu pela coragem para abordar chineses e conversar, bem como a capacidade de me desenrascar sozinha na cidade e nos autocarros.
Em compensação, pratiquei bastante o meu inglês, com os outros participantes do curso de Verão!
Beijinhos
Não deve ser fácil ficar longe de seu companheiro explorador. Mas oportunidades não faltarão. O primeiro impacto deve ter sido espantoso, mas como li tudo, começando do fim, claro, uma experiência pra ser registrada num livro. Os seus olhos enxergam o que nem todos percebem, e seu texto é digno de ficar pra eternidade.
Ruthia, amei a China através de vc! Muito prazer!
Beijos!