Atualizado em 5 Fevereiro, 2021

Uma manhã de Maio, abensonhada com chuva e palavras. Um escritor, tão grandioso na sua humildade. Um livro para as mulheres que se esqueceram que são gente

Conheci Mia Couto, o famoso autor moçambicano, numa chuvosa manhã, durante a sua digressão pelo norte do país. Mia promovia a sua mais recente obra – A confissão da Leoa – e eu quis ver de perto alguém que me acompanha ocasionalmente. Não, não sou a sua mais fervorosa fã (cabem tantos autores no meu coração) e tampouco uma conhecedora profunda da sua obra (terei porventura lido uns seis títulos?).

Em Mia surpreendeu-me o brilho do olhar, como o de um menino maravilhado perante um mundo novo que se lhe apresenta pela primeira vez. Um brilho que era sinónimo de interesse… Interesse pelo outro. Quão rara é esta disposição para ouvir, realmente escutando.

O escritor é antes de tudo um escutador. Mas para escutar é preciso anularmo-nos. Hoje, toda a gente anda muito cheia de si própria” – foram as suas surpreendentes palavras. Esse anular-se, dizendo com os gestos “eu não sou importante, mas e você de onde vem?” tocou-me profundamente. Nesses curtíssimos minutos em que conversámos, senti que Mia Couto realmente me olhou, acrescentando à já grande oferenda atenciosas palavras: “À Ruthia, a ternura de Mia Couto”.

 

A confissão da leoa

A confissão nasceu de uma experiência real, da qual o autor fez parte, na pequena e isolada aldeia de Palma (província de Cabo Delgado, norte de Moçambique). A comunidade vinha sendo alvo, regular e insistente, de um grupo de leões. Em poucos meses, 26 pessoas morreram em resultado desses ataques: 25 eram mulheres.

O seu grande amigo Sérgio Veiga (Arcanjo Baleiro, na obra), chamado para “executar” os assassinos, quis contar a caçada. Pode ler esse relato aqui. Mia Couto (o ficcionado Gustavo Rolando) escolheu o outro lado da história – o humano – transformando o leão numa metáfora.

As crenças tradicionais falam de leões-pessoa, os ntumi va vanu, comedores de pessoas que assumem hábitos e feições das suas presas humanas. Mas a maior ameaça da aldeia são as feras que moram nas palhotas. E por feras, o autor quer dizer os homens que escravizam as suas mulheres e filhas, que espancam e matam. Essas feras a quem não se pode olhar nos olhos. Essas feras que cosem a vagina à esposa, quando se ausentam (e quantas morrem de infecção por causa disso). Essas feras que violam uma rapariga, em matilha, porque inadvertidamente ela atravessou o mvera, o acampamento sagrado de iniciação dos rapazes.

Um provérbio senegalês retrata crua mas fielmente aquela condição feminina:

O verdadeiro nome da mulher é «Sim». Alguém manda: «não vais». E ela diz: «eu fico». Alguém ordena: «não fales». E ela permanecerá calada. Alguém comanda: «não faças». E ela responde: «eu renuncio».

Mariamar, a extraordinária narradora da obra (papel que divide com o caçador), é uma das presas, abusada e maltratada até pensar que não é gente, ou que está morta, porque a vida se tornou um idioma estrangeiro. Com a libertação da bela mulata (o pai morre e ela consegue finalmente sair da aldeia) renasce a esperança de que também outras saberão fugir dos grilhões que as prendem.

Foi a vida que lhe roubou humanidade: tanto a trataram como um bicho, que você se pensou um animal. Mas você é mulher (…).

E mulher tem uma capacidade infinita de trabalhar, de consolar, de amar. Esta é a Confissão da Leoa, um livro difícil (o parto demorou três anos) mas que permite sonhar com um país, uma sociedade, um planeta em que a dignidade é uma prerrogativa de todas as mulheres.