Atualizado em 16 Abril, 2021
Presa entre o planalto beirão e o Alto Douro, existe uma Aravor** granítica, de muitos tons de cinza. Em tempos, foi um posto avançado contra galegos e infiéis. Hoje, cães e turistas disputam as ruas desertas de Marialva
Os termómetros desaconselharam as saídas, na quadra pascal. Mas, no sábado de aleluia, fugi da lareira e fui até Marialva – concelho da Mêda, a cerca de 70 km da Guarda, capital de distrito -, uma das 12 aldeias históricas da zona centro do país. Passada quase uma década a viajar até Foz Côa, já era tempo de conhecer a terra dos bravos aravos (tribo lusitana que se opôs aos romanos e que empresta hoje o nome a uma marca de vinhos do Douro) que comoveu José Saramago.
A primeira impressão foi tristonha. Ainda na lonjura, a pequena Marialva apresentou-se cinzenta aos meus olhos. Pedras cinzentas (grandes, pequenas, muitas) salpicam as colinas, a muralha cinza do castelo. Nuvens baixas e carregadas, da cor do chumbo e, mais triste ainda, os arredores queimados, fruto do último incêndio, ainda não foram vencidos pela vegetação.
Ainda que um tanto monocromático, o ambiente não deixava de “ir bem” com a quadra… na noite anterior, vislumbrara pela janela uma procissão onde um caixão periclitante era tenebrosamente alumiado por meia dúzia de velas.
Carro estacionado no sopé da colina, máquina fotográfica a tiracolo e o meu petiz pela mão. Eis-me pronta para uma caminhada até à Cidadela que se esconde, envergonhada, por detrás da muralha. Apesar do frio, deambulei pelo casario sem pressas, um pouco constrangida pelo silêncio da aldeia. É que nem os dois cães que se cruzaram comigo ladraram… comportamento indigno num canino que se preze. Felizmente, pouco depois, uma grande e ruidosa família de visitantes quebrava o encantamento.
Cheguei ao topo da colina com o rosto afogueado e dirigi-me à Casa do Judeu, que funciona hoje como posto de turismo, para comprar a entrada (1,50€ para os adultos). O funcionário entregou-me um mapa, uma explicação breve e conduziu-me à Porta do Anjo, que dá acesso ao mundo intramuros.
O vento trouxe por fim umas gotas de chuva, pelo que me abriguei nas ruínas de uma casa. Naquele compasso de espera, pude observar com pormenor o que resta da muralha e dos três torreões (chamam-lhes do Relógio, do Monte e dos Namorados), e de tantas outras edificações. Ali dentro, jaz uma comunidade inteira.
Assaltam-me as palavras de Saramago, em A Viagem a Portugal:
Neste largo onde está a cisterna, onde o pelourinho está, dividido entre a luz e a sombra, adeja um silêncio sussurrante. Há restos de casas, a alcáçova, o tribunal, a cadeia, outros que não se distinguem já, e é este conjunto de edificações em ruínas, o elo misterioso que as liga, a memória presente do que viveram aqui, que subitamente comove o viajante, lhe aperta a garganta e faz subir lágrimas aos olhos. Não se diga aí que o viajante é um romântico, diga-se antes que é homem de muita sorte: ter vindo neste dia, nesta hora, sozinho entrar e sozinho estar, e ser dotado de sensibilidade capaz de captar e reter esta presença do passado, da história dos homens e das mulheres que neste castelo viveram, amaram, trabalharam, sofreram, morreram.
Eu, que vi o conjunto através das palavras do meu pequeno parceiro de aventuras, achei o lugar menos nostálgico e mais excitante: “Mamã, aqui foi a casa de um rei? Mas agora já não mora aqui ninguém. Anda, ainda não subimos por ali…”
E lá fomos à torre de menagem, desfrutar da vista panorâmica, onde contei ao meu filho uma versão muito aligeirada da lenda da Dama dos Pés de Cabra. Teria sido dali que a bela donzela, de seu nome Maria Alva, se teria lançado depois de terem descoberto o segredo dos seus pés deformados.
À saída, cruzámo-nos com um casal, alentejanos se o sotaque os denunciou bem, que nos bateu uma foto. O vento, inabalável, continuava a soprar frio. Sabia bem um chocolate quente mas não descobri o único café que dizem haver por ali e, sendo quase hora do almoço, decidi regressar.
Já no interior do carro, desenvencilhados dos cachecóis, perguntei ao Pedro o que tinha achado da aventura. “Fiquei com as mãos frias, mamã” – após uma pausa, como que para compilar toda a informação que queria transmitir, acrescentou cada vez mais depressa – “havia um castelo e muitas pedras e eu subi, subi, o vento bateu na minha cara, mas consegui ver até muito longe… e vou dizer ao papá que tirei muitas fotografias”.
Pelo discurso apressado, percebi a sua alegria. Também ele, como Saramago, cresceu depois de ir ao castelo de Marialva.
** Aravor – colina alta
4 Comentários
Marialva!:)))
Pois, como o Miguel nunca quer ir a lado nenhum, peguei no piqueno e aí fomos nós à aventura 🙂
Adorei!! A forma como escreves chega a ser comovente!! Beijinhos
Obrigada, querida(o) anónima(o). Espero que continues a acompanhar o blog 🙂