Atualizado em 3 Dezembro, 2022
Os edifícios de Ouro Preto revelam alma aportuguesada e as igrejas opulência barroca. As pedras da calçada falam de ambição desmedida e do sonho de liberdade dos inconfidentes. O vento, esse, transporta palavras de ódio de outras épocas…
“Precioso, ainda que Negro” foi o lema da bandeira de Ouro Preto (Estado de Minas Gerais, Brasil) até 2005, data em que vários movimentos o fizeram alterar, por alegadas conotações racistas, para “Precioso Ouro Negro”. A memória da minha visita a esta Cidade Monumento Nacional, a primeira brasileira distinguida como Património da Humanidade (1980), foi avivada por um projeto da Fundação Calouste Gulbenkian, chamado HPIP – Heritage of Portuguese Influence, recentemente divulgado.
Muito resumidamente, o portal interativo resulta de um grande levantamento do património arquitetónico de influência portuguesa no mundo. Quase todo resultante daquela época áurea em que demos “novos mundos ao mundo” (para usar a retórica dos Descobrimentos).
No portal encontram-se edificações magníficas e tão díspares como o Palácio do Governador em Mindelo, o Convento do Precioso Sangue em Macau ou o edifício do Liceu Nacional de S. Tomé e Príncipe. Com muita pena minha, da extensa lista de sítios ali divulgada, praticamente só conheço, ao vivo, os edifícios de Ouro Preto e Mariana.
Falemos então de Ouro Preto, uma das 7 Maravilhas do Brasil, pequena joia perdida num profundo vale das montanhas mineiras, com tantos traços familiares que me pareceu estar numa qualquer aldeia portuguesa. Saiba que a encantadora Ouro Preto integra a famosa Estrada Real, considerada a maior rota turística brasileira que até tem um passaporte para registar os seus passos pelo percurso que se estende pelos estados de S. Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
Vila Rica em horrores
Nas águas velozes do rio Tripuí se encontrou a primeira pedra escura que despoletou toda a história. O ouro negro, “eclipse de um sol do mais puro quilate”, encoberto por uma camada de óxido de ferro, deu início à febre. Milhares de aventureiros quiseram tentar a sua sorte.
Vila Rica, como então se chamava, cresceu e com ela histórias de crueldade. Os escravos praticamente viviam nas minas, respiravam o óleo de baleia queimado das tochas para satisfazer uma ambição alheia sem fim. Ainda se pode visitar uma espécie de senzala (parecida com a corte dos porcos que se usa por baixo de algumas casas minhotas) na Casa dos Contos.
A coroa quis o seu quinhão e quando o ouro começou a escassear continuou a exigir, a extorquir. A opressão culminou na Inconfidência Mineira, movimento duramente rechaçado por Portugal. Um dos seus cabecilhas, conhecido como Tiradentes, foi enforcado. Durante muito tempo, chamar a alguém inconfidente era considerado um insulto, hoje é sinónimo de liberdade e o Dia de Tiradentes é feriado nacional – enfim, são as voltas da história!
S. Jorge e Aleijadinho – a história tem cada anedota
De nada adianta o ouro ao mundo se não for possível ostentá-lo. Novos-ricos e mecenas, artistas e ordens religiosas também fazem parte da história de Ouro Preto que, por isso mesmo, possui o maior conjunto barroco do mundo.
A Igreja de São Francisco de Assis é um dos exemplares mais orgulhosos da cidade – ali se pode apreciar o belo tecto pintado pelo mestre Ataíde e as esculturas do famoso Aleijadinho, que também é responsável pelo traçado geral do prédio.
De seu nome António Francisco Lisboa, o Aleijadinho era filho de um respeitado arquitecto português e da sua escrava. Apesar da alcunha, causada pelo aspecto pouco agradável (fala-se de deformações causadas por doença), o Aleijadinho é um escultor, arquitecto e entalhador de renome, considerado expoente máximo da arte colonial do Brasil.
Não quero adiantar muito sobre a sua obra, aliás este post já abusa de apontamentos históricos. Mas não resisto a deixar uma anedota que, tendo muito ou pouco de verdade, é deliciosa.
Dizem que o chefe de gabinete do governador deitou olhares algo insultuosos ao artista, quando este foi chamado ao palácio por causa de uma encomenda – uma nova imagem de S. Jorge. Na data da entrega, a grande estátua articulada reproduzia, detalhada e caricaturalmente, o rosto desse senhor, António Romão. Daí resultaram uns versos:
Aquele que ali vai, com cara de santarrão / não é santo coisa nenhuma, é António Romão!
Mas a história fica ainda mais bizarra. Chegado o dia do santo sair à rua, como atracção principal de uma procissão, o S. Jorge foi montado num cavalo, de espada em riste. Por algum motivo, a cavalgadura assustou-se e a imagem foi lançada para a frente. A espada do S. Jorge trespassou o escravo que, vestido de cetim, conduzia o bicho e matou-o ali mesmo. Susto, horror, quem fora o assassino? O S. Jorge pois claro. A imagem foi assim conduzida à prisão.
Portanto, quem puder viajar até Ouro Preto, cidade de história e de arte, terra de inconfidentes e universitários (há pelo menos 67 repúblicas na cidade), não se esqueça de visitar o S. Jorge que mantêm atrás das grades, para fins turísticos, na Casa da Câmara e Cadeia.
Outro Preto é uma das várias cidadezinhas que integram a Estrada Real, nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Tiradentes é outro destino desta rota turística que merece uma visita e a Elizabeth Werneck tem um post completo sobre O que visitar em Tiradentes: roteiro completo para o final de semana.