Atualizado em 19 Junho, 2023
Freud ficou obcecado por ele, os críticos de arte não param de o (re)interpretar, os leigos quedam-se perplexos à sua frente. Também eu subi as íngremes escadas do Corso Cavour e tentei suportar o olhar do furioso Moisés.
A Igreja de San Pietro in Vincoli é modesta, por comparação com outras em Roma. E, quando a encontrámos inesperadamente fechada à hora de almoço, o Miguel não entendeu muito bem a minha teimosia em visitar aquele templo específico, com tanto da cidade por explorar. Mas um dos meus must-sees repousava lá dentro: o famoso Moisés de Michelangelo.
O profeta, esculpido em mármore carrara, parece extraordinariamente real. Os seus poderosos músculos rasgam a pedra; a barba, pujante e farta, cai em longos caracóis; um dos pés firma-se, como se o hebreu estivesse a levantar-se.
O seu olhar é duro: estará zangado ou simplesmente determinado? Para alguns historiadores, ele acaba de descer do Monte de Sinai, com as tábuas da lei, e depara-se com o povo eleito por Deus a adorar um bezerro de ouro. Nesta sua obra-prima Michelangelo terá congelado o momento imediatamente antes da sua explosão de fúria. Aliás, Moisés tinha um génio tempestuoso, recorde-se o episódio em que matou um egípcio por chicotear um escravo…
As sobrancelhas ameaçadoras do profeta parecem apoiar esta teoria.
Interpretar este Moisés
Mas outros acham que a majestade do legislador hebreu resulta da epifania que acaba de experimentar na presença do Criador, portanto os seus olhos estarão “voltados para aqueles mistérios que somente ele divisou” (Müntz, 1895) e o seu semblante terá “o reflexo da eternidade” (Steinmann, 1899).
Vamos ser prosaicos. Será que Michelangelo não deu este aspecto severo a Moisés como metáfora do temperamento do Papa Júlio II? Afinal, a escultura destinava-se ao seu túmulo, uma tumba que pretendia ser grandiosa, com mais de 40 estátuas, mas que nunca foi terminada…
A verdade é que este Papa não era particularmente amistoso. Em certa ocasião, perdeu as estribeiras por causa da demora do teto da Capela Sistina e deu umas bengaladas ao Michelangelo. Mas isso seria uns anos mais tarde…
Regressemos a este Moisés e aos seus controversos chifres. Porque raio Michelangelo o enfeitou com aqueles extremos animalescos? Alguns apontam um mero erro de tradução de S. Jerónimo, que traduziu para o latim karan (cornos) em vez de keren (raios de luz). Pessoalmente, tenho muitas dúvidas, Michelangelo era complexo, perfeccionista e inteligente.
Apesar dos chifres e da estrutura gigantesca, este Moisés parece tão real que o artista, terminada a escultura e alterado perante a beleza da sua obra, lhe bateu – com um martelo ou um cinzel (há sempre várias versões dos boatos) – gritando “Perché non parli?”.
Porque não falas realmente, Moisés? Só falta isso. Porque, olhando atentamente, tudo faz sentido… até as tuas unhas rachadas de pastor.
Outras obras-primas de Michelangelo
Quem for a Roma, não pode deixar de visitar ainda a delicada Pietà, na Basílica de S. Pedro. O vidro à prova de bala que a protege – em 1972 um maluco golpeou-a – não impede que nos emocionemos perante esta escultura, que Michelangelo concluiu aos 23 anos.
Por causa dos céticos, que não acreditavam que alguém tão novo fosse capaz de tal perfeição, o artista gravou o seu nome no manto da Virgem. “MICHAEL ANGELUS. BONAROTUS. FLORENT. FACIEBA(T)”, ou seja, “Miguel Ângelo Buonarotus de Florença fez”. É a sua única peça assinada.
Perto dali, nas entranhas do Museu do Vaticano, fica o teto da Capela Sistina. Nem vou tentar descrevê-lo, pois nenhum tratado de arte lhe fará justiça, nenhuma radiografia (já as fizeram e descobriram a exata anatomia do cérebro humano e outras maravilhas) explica o estado emocional que aquele afresco gigante é capaz de provocar…
A única coisa possível é mergulhar naquele teto, que parece sugar-nos para o meio das suas cores vibrantes (visita virtual à Capela Sistina aqui).
Para quem viaja para Roma com objetivos religiosos, vai gostar de ler em detalhe sobre a Bênção do Papa a recém-casados .
Na mesma capela, é possível apreciar O Juízo Final, uma pintura muito mais sombria, onde recentemente se descobriu o auto-retrato de Michelangelo. Mais uma prova da subtil ironia e inteligência daquele mestre do Renascimento. Que outras obras-primas de Michelangelo tiveram o privilégio de visitar?
24 Comentários
É possível analisar, radiografar, adivinhar, mas apenas três coisas são possíveis perante o génio e a perfeição das obras de Michelangelo: ver, sentir e sonhar.
Obrigada por mais esta viagem, Ruthia!
Beijinhos.
Muito bom ver cada detalhe dessas obras de arte que temos por lá! E, realmente, teria sido uma pena, não poderes ver o Moisés! Lindo o teu olhar e renovo os meus contigo aqui! beijos,ótima semana, obrigadão pelo carinho!chica
Miguel Ângelo gostava de se vingar dos inimigos no que fazia.
Talvez os chifres tenham a ver com isso.
Mais um excelente post.
Ruthia, querida amiga, tem um bom domingo e uma boa semana.
Beijo.
Os reis e outros poderosos achavam-se muito espertos, muito magnânimos por sustentarem os artistas e, por vezes, eram ridicularizados sem nunca o chegarem a saber.
Se bem que esta crítica (se é que a interpretação está minimamente perto da verdade) é quase um elogio, porque a escultura é magnífica 🙂
É sempre muito bom viajar consigo, Ruthia! Não só pelas lindas fotografias, mas também pelas suas descrições, que fazem sentir lá, a observar as obras de Michelangelo!
Obrigada por este momento e pelos pedaços de história que partilhou connosco!
Um abraço
Querida Ruthia
É muito bela a sua crónica!!! E útil,para quem nunca foi a Roma e teve a possibilidade de admirar esta obra prima. De acrescentar que, a minha amiga é perfeccionista e,alia a sua descrição a relatos de entendidos na matéria a que se refere.
Muito obrigada pela partilha.
Um bom domingo.
Beijinhos
Beatriz
Beatriz, li muitos artigos sobre esta escultura e fiquei siderada o quanto tem causado polémica entre os críticos de arte ao longo dos séculos. Como o artista não a explicou, deixa muita margem à interpretação e os humanos têm uma imaginação fértil…
Beijinho
Ruthia, agora lendo seu post que percebi a perfeição das obras. A gente vê mas não enxerga… Mas o que estaria pensando Moisés? Com certeza alguma bronca ele daria em alguém, ou algo pior. Fica a curiosidade pra humanidade.
Um lindo domingo e uma iluminada semana!
Beijos
Quantas curiosidades interessantes sobre essas obras de arte tão conhecidas da História! Lindas todas e minha preferida; Pietá. bjs e boa semaninha,
Moisés é uma das figuras mais emblemáticas da história cristã! É uma pena que a Bíblia não retrate com todas as letras o que este ser representou para a humanidade naquela épóca!
Beijão!
Lindo lindo.
Adoro arte amiga.
Queria poder está aí ver tudo de pertinho.
Bju
Ruthia,
Eu adoro historia e geografia.
Fico encantada com a arte (pinturas e esculturas) antiga.
A arte pós e moderna pode ter grandes nomes, mas não se compara com a antiga.
Bjs
Também penso um pouco assim. Ainda que inovadora, a arte dita contemporânea não me emociona como esta, clássica
Beijinho
Tanta beleza junta, nem sei o que comentar… mas ia sentir certamente comoção ao ver a Pietá e o tecto da Capela Cistina!
Moisés: esmagador, sem dúvida!
Beijinhos, boa semana!
As obras de Michelangelo são maravilhosas e eu tive ocasião de as observar durante as minhas quatro viagens a Roma As narrativas que faz das suas viagens são excelentes !
Uma boa semana
Adoraria ver de perto essas obras magníficas. Deve ser emocionante fitá-las e relembrar a história. Você conduz com beleza sua narrativa e, de certa forma, nos encontramos, também, nos lugares que visita. Bjs.
Nunca fui a Roma. Ao ler-te, é como se lá estivesse também. Maravilhosa a descrever o que vês.
Beijinho
Querida Ruthia,
Observadora!!!!
Obrigada por perceber a metáfora!
beijos
Ruthia querida, que viagem maravilhosa estás a nos proporcionar com teus posts..uma mais incrível que o outro… adoro ler-te e aprender contigo tantas coisa..novamente, obrigada pela linda viagem que proporcionastes!! bjs desejando ótima semana
tititi da dri
Amiga, adoro Michelangelo! Me lembra muito a casa do meu vovô quando ele era vivo pois tinha obras em sua casa 🙂
Boa semana Ruthinha!!
Beijos, Té
OI Ruthia, que bom que você persitiu e que valeu a pena. Melhor ainda que nos mostrou essa obra de arte e os eu ponto de vista sobre ela.
beijos
Chris
Inventando com a Mamãe
Estupendo,
ter o privilégio de poder olhar, tais obra de arte.
Um privilégio, que eu adoraria ter.
Adorei!
Beijinho
Delícia de texto, Ruthia! Coisa boa colocar em palavras a emoção, a dúvida, a experiência… Amei!
🙂
MICHELÂNGELO ERA GAY? OU NÃO. ALGUÉM SABE DIZER