Atualizado em 23 Abril, 2021

Vários mestres de kung fu surgiram em Guangdong, a província chinesa mais a sul. Foshan foi a terra de um desses 10 tigres, tornando-se paragem obrigatória para quem gosta desta arte marcial

O leão dança ao ritmo de tambores e gongos e as crianças juntam-se a ele, fascinadas com a personagem mítica. Manejado por dois dançarinos, o peludo animal, branco e verde, movimenta energicamente a cabeça e as mandíbulas, salta entre plataformas de várias alturas e abana a cauda, numa pausa brincalhona.

A dança do leão ( 舞獅) é uma arte cerimonial que, entre muitos outros simbolismos, serve para exorcizar espíritos maléficos, para invocar sorte e felicidade.  Recordando a tradição de recolha de alfaces, este leão distribui a sua boa sorte em troca de notas de 100 kuais*. Os pais apressam-se a levar a sua prole até à figura mitológica com características de quatro animais sagrados – dragão, tigre branco, tartaruga e fénix -, dispondo-se a pagar pela fita vermelha portadora de boa fortuna.

Adiante, um grupo de discípulos desta escola de kung fu prepara-se para um ataque fulminante. Ah! Afinal estão apenas a posar para a foto, certamente um turista desembolsou para ser eternizado entre os guerreiros.

Estou em Foshan, província de Guandong (广东, Guăndōng), cidade muito famosa entre os seguidores de artes marciais. [Recordem também a capital da província, Cantão]. A região pariu o talentoso Bruce Lee e outros mestres, não tão conhecidos, mas maiores nestas artes guerreiras: Huang Feihong e Yip Man.

A dança do leão aconteceu precisamente no memorial de Huang Feihong (1847-1924), que integra o complexo do Templo Zu Miao, construído nos tempos da longínqua dinastia Song. Dedicado à deusa  taoísta do mar, ainda hoje os habitantes veneram aqui os seus antepassados.

Para além de um lugar de fé, o espaço tem um carácter museológico, recordando o grande mestre de artes marciais Huang Feihong (黄飞鸿), filho de um dos 10 tigres de Cantão** e também um especialista em medicina tradicional chinesa.

Aos 17 anos, já tinha a sua própria escola de kung fu e pouco depois tornava-se um herói da resistência chinesa contra o Japão. A sua história inspirou mais de uma centena de filmes e séries (assistam ao trailer da última saga, aqui).

Apesar de ser chamada de “cidade zen”, Foshan é uma cidade em tudo ligada à guerra. Mas eu consigo abstrair-me completamente dessa vertente bélica. Basta-me apreciar a arquitectura, os guardiões gigantes alinhados à entrada, os belíssimos telhados esculpidos em madeira.

Aliás, o templo de Zu Miao ficará eternamente gravado na minha memória como um lugar de paz. Relaxada com o cheiro do incenso e o silêncio dos chineses que ali vêm deixar uma prece, embalada por umas finas gotas de chuva que abençoam a manhã quente, sorvo esta tranquilidade maravilhosa. Deixo, também, um agradecimento por este momento genuíno, por nenhum sobressalto ter perturbado esta minha aventura, pelo meu filho que tem aguentado as saudades como um herói…

Não chega a ser uma prece, apenas uma comunhão com o mundo, comigo e com os outros. Os paus de incenso acendem, depois de alguma teimosia, e elevam os meus pensamentos no ar.

* A dança de leão é muito apreciada em ocasiões festivas, seja na inauguração de um comércio ou casamentos. É indispensável no ano novo chinês. Nessa altura, os dançarinos e alunos de artes marciais recebiam dos comerciantes uma alface e um envelope vermelho com dinheiro. O leão, como um gato curioso, engolia a alface mas acabava por cuspir as folhas, ficando com o dinheiro. Com este gesto, a escola de kungfu comprometia-se a proteger o comerciante, em caso de necessidade.

** Durante a era dourada do kungfu surgiram 10 grandes mestres de artes marciais, conhecidos como os 10 tigres de Cantão (广东十虎),  que lideraram algumas sociedades secretas no final da dinastia Qing (a última), de carácter anti-imperial.