Atualizado em 28 Dezembro, 2023

Leonardo Da Vinci, um dos maiores génios do Renascimento e da história viveu em Milão parte da sua vida. Aqui deixou uma das suas mais belas obras: il Cenacolo

Um dos motivos pelos quais escolhi a capital da Lombardia como destino reside no sombrio refeitório da Igreja de Santa Maria della Grazie, na Via Corso Magenta, em Milão. Os irmãos dominicanos que comiam perante esta obra-prima deviam dar graças por isso diariamente.

Com 9 metros de largura e 4 de altura, A Última Ceia ocupa toda uma parede (nada de deceções, como acontece com a minúscula Mona Lisa). É tão bela que nem reparei no ambiente frio que a envolve, numa tentativa de a preservar. Até esqueci a corrida louca para chegar a horas da visita.

As reservas abrem com três meses de antecedência e são tão concorridas que só consegui vaga para o dia da chegada, pelo que voámos do aeroporto para a cidade, da estação central para o apartamento e, largadas as malas, voltámos a correr para o metro e daí para a igreja, como se tivéssemos asas nos pés.

Já não tenho idade para isto, mas a alternativa seria perder o privilégio de ver A Última Ceia. E ela pode não durar para sempre. Porquê?

O espírito experimental de Leonardo não teve um resultado muito feliz aqui. A técnica de têmpera (tinta preparada com óleo de linhaça e ovos, aplicada sobre uma camada de gesso) foi desastrosa. Leonardo nunca tinha trabalhado numa pintura tão grande e não tinha experiência nesta técnica, cuja superfície seca rapidamente. Pouco depois, apareciam as primeiras fissuras.

Perspetiva diferente da Igreja, a partir do Claustro dos Sapos

Na época de Napoleão, o refeitório foi usado como estábulo e, na II Guerra Mundial, o edifício foi bombardeado. Embora a parede em causa permanecesse miraculosamente de pé, permaneceu sob o sol, a chuva, o vento e a poluição até a cidade e os seus monumentos serem reconstruídos. Foi necessário um grande restauro (1977-1999) para preservar aquilo que hoje vemos.

A igreja e o museu foram declarados Património Mundial da Unesco em 1980, por se considerar que A Última Ceia “é uma realização artística única e atemporal de valor universal excecional”, que influenciou fortemente todo o desenvolvimento da pintura. Sendo uma das pinturas mais reproduzidas e copiadas de sempre, a sua criação é “considerada o prenúncio de uma nova fase na história da arte”.

Eis pois a perspetiva perfeita da última ceia, que amplia a sala. Eis o ar resignado de Jesus que contrasta com as emoções de cada um dos apóstolos, que reagem à notícia da traição. A cena é tão viva que parece uma fotografia.

Eis o belo João, que causou tanta polémica. A guia afirma que, ao contrário do que o Dan Brown efabulou (após especulações em “The Templar Revelation”, de Lynn Picknett e Clive Prince), este é mesmo o apóstolo mais novo, atribuindo as feições delicadas à sua juventude. “Na época, era habitual retratar os homens jovens e bonitos com traços efeminados”.

Eis o traidor Judas (o quinto da esquerda, a segurar uma bolsa com prata), que terá sido inspirado no rosto de um criminoso de Milão.

#Curiosidade: os conhecimentos de matemática de Leonardo Da Vinci foram fundamentais para dar perspetiva à obra. Todos os elementos da pintura direcionam o olhar para a cabeça de Cristo.

Leonardo da Vinci
Leonardo com os seus pequenos ajudantes, durante as férias escolares, no Castelo Sforzesco

A Última Ceia é um dos temas mais populares da arte cristã e, no século XV, muitos artistas (como Ghirlandaio e Castagno) produziram obras sobre o tema, normalmente mostrando Cristo a partir o pão, instituindo, assim, o sacramento da Eucaristia. Para evitar a banalização da cena, Leonardo da Vinci criou uma composição brilhante, que envolve emocionalmente o observador e representa o momento dramático em que Jesus anuncia que um de seus apóstolos o trairá.

Cada um dos 12 discípulos reage de acordo com a sua personalidade, resultando num estudo de emoções humanas extremamente complexo e detalhado.

Os 15 minutos da visita esfumaram-se tão depressa! Mas ainda temos a igreja por descobrir, após um gelado. Construída no colorido tijolo lombardo, a igreja de Santa Maria della Grazie foi modificada e embelezada por Ludovico il Moro, o patrono do génio toscano.

#Curiosidade: depois de traduzir os sinais matemáticos e astrológicos da pintura, a pesquisadora do Vaticano Sabrina Sforza Galitzia afirma que A Última Ceia prevê um dilúvio apocalíptico que varrerá o globo a partir de 21 de março de 4006.

O patrocínio do duque explica porque os brasões e as iniciais da família Sforza aparecem nas três lunetas acima do mural. Quando Ludovico encomendou a pintura, Leonardo da Vinci tinha 42 anos e fama de nunca terminar os projetos, mas após três anos de trabalho lento e laborioso, conseguiu melhorar a sua reputação.

De resto, a casa do duque (o Castelo Sforzesco) foi também o lar de Leonardo Da Vinci durante 17 anos. Vamos até lá? Trata-se de um edifício monumental que hoje acolhe uma série de museus. O conjunto prolonga-se num vasto parque, onde os duques levavam os seus hóspedes a caçar na Idade Média. Hoje, os milaneses usam-no para correr, fazer piqueniques, namorar e descansar.

Sentada na relva do Parque Sempione, com o belo Arco della Pace ao fundo (mandado construir por Napoleão para a sua entrada triunfal na cidade), imagino o grande Leonardo naquele castelo, ocupado com um dos seus inúmeros projetos. Ali escreveu muitos dos seus famosos códigos, pintou uma das salas do duque, projetou o sistema de comportas dos canais de Milão. Será que foi feliz?

parque junto ao castelo onde viveu leonardo

Última Ceia: reservas aqui  | Bilheteira e visitas: de terça a domingo das 8h15 às 19h00 | Preço: 15€ (adulto, com visita guiada), 2€ (18-25 anos), gratuito até aos 18 anos *valores de 2023

Igreja de Santa Maria della Grazie: entrada gratuita
Castelo Sforzesco: Site | entrada museus 5€ (adulto), 3€ (reduzido), gratuito até aos 18 anos