Atualizado em 9 Abril, 2021
Foi uma longa viagem de Luanda até Malange, a província natal das grandes palancas negras, esse símbolo da selecção angolana em vias de extinção.
Algo se destaca ao longe, no meio da savana, parece uma manada de elefantes em fila indiana. Mas as sombras agigantam-se e eis-nos perante as Pedras Negras de Pungo Andongo, anomalias geológicas com milhões de anos.
Como se não bastasse a sua imponência – algumas erguem-se a mais de 250 metros do chão -, o lugar está possuído por uma aura de magia. Talvez por causa de todos os mitos e lendas que o povo lhes atribui. Dizem que os reis Ngola se refugiaram aqui em Pungu-a-Ndongo e aqui praticaram torturas ou bacanais (depende da versão).
Aqui terão deixado ainda as suas pegadas, uma é atribuída ao rei Kiluange e outra à rainha Ginga. Pegadas bem grandes, por sinal, nada prováveis para uma senhora, mesmo com estatuto quase sobrenatural.
Infelizmente, as sombras alongam-se e o Miguel apressa-nos. As estradas não têm iluminação e não lhe apetece partir um eixo, num lugar onde os telemóveis são inúteis. Há que chegar a Kalandula antes de anoitecer completamente.
As Quedas de Kalandula
Na manhã seguinte, espera-nos uma das mais belas 7 Maravilhas Naturais de Angola: as Quedas de Kalandula. Conhecidas como Quedas Duque de Bragança, no período colonial, são as segundas em ordem de grandeza do continente. Elas fazem-se anunciar sonoramente logo que estacionamos. Como acontece nas Cataratas de Vitória, no rio Zambeze, parece que “o fumo troveja”.
Infelizmente, não estamos sozinhos. Várias crianças costumam deambular por ali, pedindo uma moeda, em troca da vigilância do carro ou de uma visita guiada.
Mas hoje o lugar está particularmente apinhado, graças a um grupo de adolescentes evangélicos que veio acampar. Realmente, não parece nada de extraordinário face ao esmagador potencial turístico do sítio. Acontece que os garotos nos perseguem, com um misto de curiosidade e, em alguns casos, uma pontinha de provocação.
Tenho que me sentar pacientemente numa pedra, com vagares de budista, até se desinteressarem destes estranhos alienígenas. Só então conseguimos apreciar a beleza das águas que se precipitam alegremente, de 105 metros de altura, para continuarem depois mais mansamente o seu curso no Lucala, o maior afluente do Kwanza. Os habitantes dizem que aqui não há jacarés, mas que as águas escondem outros perigos: sereias que atacam os visitantes solitários e lhes sugam o sangue.
O sol envergonhou-se. Aliás de noite caiu uma chuva miúda (e eu que sonhei ver uma verdadeira tempestade africana) pelo que os dois famosos arco-íris não apareceram hoje. Normalmente são dois, um casal, dizem os angolanos.
Cruzámo-nos com outra família estrangeira que parece constrangida com a atenção que suscitou. Está visto que não conseguiremos um momento de meditação neste lugar maravilhoso, pelo que voltamos à estrada, não sem antes entregar o bolo-rei que nos resta ao pequeno Domingos. O miúdo de 10 anos fez um trabalho fantástico a vigiar o carro, enquanto nos seguia para todo o lado. Pergunto-lhe se anda na escola. Diz que sim, está na 3ª classe.
– Gostas de estudar?
– Sim senhora, estou quase a aprender a escrever.
– Como? Mas não andas na terceira classe?
– Sim senhora, mas fica difícil escrever o meu nome…
Não sei o que replicar a tal argumento, pelo que me limito a entregar-lhe o bolo prometido, que agradece com um sorriso, divide com um amigo e engole com gula.
A aldeia da bolacha
Surpreendentemente, o Miguel ainda nos quer levar às Quedas de Musseleje, a 20 km. Após uns rápidos cinco quilómetros de asfalto, espera-nos quinze de picada africana, após uma noite de chuva. Que aventura!
Sentimo-nos exploradores no meio deste nada, cercados por vegetação. De longe a longe um kimbo esquecido pelo mundo interrompe a paisagem, com casas feitas de adobe e telhados de colmo ou zinco. As crianças acenam, sorridentes, enquanto as cabras se afastam calmamente do caminho. Pedem-nos bolachas, bolachas, sempre bolachas. Suponho que qualquer guloseima seja rara num sítio onde não há água canalizada ou electricidade.
E não são só as crianças que pedem.
– Mamã grande, uma bolacha pra nha filha.
– Não tenho – lamento eu, profundamente (porque raio não meti meia dúzia de pacotes de bolacha Maria no saco?). Ela encolhe os ombros, num paciência! e segue o seu caminho.
Adiante, paramos para pedir indicações, porque não há placas. Que digo eu, se nem sequer há sinais de trânsito, se nem sequer há estrada! Temos que voltar para trás, diz uma senhora de voz meiga, com um bebé preso nas costas. Sorri, um sorriso grande, aberto, sem maldade e eu tenho vontade de sair do carro e perguntar-lhe tanta coisa.
Se é feliz ali, apesar de algumas carências que deve sentir naquela aldeia longínqua. Sabe, é que nós lá na parte de cima do mundo, andamos muito infelizes com a vida, com os impostos, os políticos corruptos, o colesterol e outras ninharias. Queria muito perguntar-lhe o que espera da vida, que sonhos lhe sustentam o coração, como põe comida na mesa.
Controlo a minha curiosidade, que direito tenho eu de lhe pedir que desnude a alma?! E seguimos para as Quedas de Musseleje, modestas em comparação com as anteriores, mas todas para nós. E aqui, finalmente, sentamo-nos, respiramos fundo, deixamos o pensamento vaguear.
Não sou a mesma pessoa antes e depois desta viagem. Só não sei colocar essa mudança subtil em palavras.
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36 Comentários
Que grande e maravilhosa aventura! Fotos lindas, vídeo excelente! Senti-me em Angola!
Obrigada, pela partilha…
Beijo!
Uau… não sei o que está mais espetacular – se o texto, se as fotos.
Que grande aventura, Ruthia! Compreendo bem que acredites não ser mais a mesma depois desta viagem! Adorei saber de sua vontade de perguntar " que sonhos lhe sustentam o coração" à senhora de voz meiga… eu também ficaria tentada a isso.
Abraço!
Emocionante….
Sem palavras…
Bjs
Olá Paula, obrigada pelas suas amáveis palavras. Seja bem vinda ao meu modesto cantinho, espero que se sinta em casa. Visitei o seu perfil mas não encontrei qualquer blog da sua autoria. Caso tenha um, por favor deixe o link para eu poder retribuir a sua visita.
Um abraço, volte sempre
Amiga querida, assim como a Jussara, também fiquei com vontade de perguntar a senhora de voz meiga e até deu-me vontade de dar-lhe um afetuoso abraço… fica a lição de, se um dia for para estes lados, levar quilos de bolachas Maria para distribuir.
Como sempre, um texto impecável, que nos leva a sonhar e nos faz sentir presentes no teu passeio; uma lição de história e cultura que enriquece nossa alma. Obrigada por compartilhar mais esse lindo episódio de tua viagem!
Bjs com saudades e abraços carinhosos no Pedrinho… esperamos vocês por aqui!
tititi da dri
Ruthia,
É uma realidade de vida diferente da nossa, mas a cultura e toda natureza ao redor ajuda que possamos evoluir como seres humanos. Linda viagem.
Obs: leitão corajoso atravessando a estrada!
Bjss
Boa tarde, certamente que foi uma viagem incrível e inesquecível, caminhar pelo meio da linda natureza é como andar nas nuvens.
Excelente fotorreportagem.
AG
Agradeço o elogio, ainda por cima vindo de um fotógrafo talentoso. Mas acredite que nenhuma das imagens faz jus aquilo que eu vi. Há "grandezas" que só o coração sente.
Abraço
O artigo e as fotografias fazem justiça à maravilha que é as quedas de água de Kalandula 🙂
Beijinhos nossos
querida amiga, hoje fiz postagem sobre palácio de queluz e te citei lá- http://tititidadri.blogspot.com.br/2015/01/palacio-real-de-queluz-eu-estive-la.html
espero que gostes
bjs
Bonitas imagens…não me importava nada de lá ir.
Isabel Sá
Muito bom seu relato minha amiga, Assim conhecemos um pouco mais desta terra de sofrimentos e dores, mas que o povo ainda sorri.
Deve ser emocionante o contato com esta gente pobre.
Suas imagens estão fantásticas Ruthia.
Grato pela partilha amiga.
Um lindo fim de semana a vocês.
Beijo
Olá querida, amiga!!! Tenho andado ocupada com o trabalho e hoje vim aqui olhar seu blog e me deparo com essa viagem maravilhosa. Como é gratificante poder conhecer outras culturas e contemplar lugares tão belos, não é mesmo?
Parabéns pelo texto, pelas fotos e obrigada por compartilhar conosco. Beijo grande
Imagens e sucessos impressionantes, Ruthia, quanta vida pujante nos espaços e nas gentes.Tua narrativa nos leva junto, detalha os assombros e faz sentirmo-nos um pouco mais conhecedores destes lugares quase mágicos.
Meus aplausos pelo conjunto da obra /.
Bjinhus,
Calu
Que viagem impressionante!
Uma reportagem muito boa.
Gostei muito.
Beijinhos
Ruthia, eu penso o seguinte: ela nasceu e cresceu nesse lugar, que pra nós que temos todo o conforto achamos muito precário, e é, então está acostumada com essa vida. Nunca viveu em outro lugar com abundância, então que futuro ela pensa? Talvez morrer sem doenças… não sei.
Eu tbm ficaria muita curiosa pra desnudar a alma dessa gente que sorri, mesmo com tão pouco, mas o pouco é tão firme que segura o riso até o fim da vida.
Fotos lindas!
Bom fim de semana, beijos!
Tem toda a razão, de momento estou vivendo num verdadeiro paraíso.
Esta cidadezinha, onde tenho um apartamento (e também uma moradia que vou começar a… restaurar, digamos assim…) é um local donde não apetece sair. Mas… donde eu sairia com todo o gosto para visitar os locais maravilhosos que nos mostra nesta excelente postagem (óptimas fotos e óptima descrição).
África tem encantos muito próprios, e sei que quem lá viveu não os esquece. Ainda não pus de parte a ideia de "a" visitar. Quando regressar a Portugal tenho que pensar nisso.
Obrigado – pela partilha a pela agradável presença no meu canto.
Um beijo
Oi Ruthia, desejo uma bela semana a voces.
Abraços.
Bju
África mexe mesmo consigo, Ruthia.
(As raízes, por mais caladas que estejam, nunca deixam de falar connosco)
Um beijinho 🙂
Que relato incrível. Não conhecia essa grande queda d'água e fiquei encantado com as fotos. A energia deve ser tão plena que não tem como sair da mesma forma depois de uma experiência dessa.
Que texto é esse?! Pura poesia e encantamento. Obrigada por dedicar seu tempo para dividir com a gente palavras e imagens tão preciosas.
Eu é que agradeço a vossa presença na minha humilde casa.
Abraço à família viajante
As fotos ficaram maravilhosas. E realmente quem conhece um pouco deste lugar incrível volta completamente diferente.
Nunca tinha ouvido falar desse lugar, a paisagem é maravilhosa!
É triste haver toda essa desigualdade social, esse povo tão necessitado.
O que achamos ser necessário é muito influenciado pelo lugar onde nascemos e crescemos. Portanto, tudo deve ser relativizado. Não vi ali crianças tristes, apenas grandes sorrisos. Claro que toda a gente devia ter direito e acesso a água canalizada, saneamento básico, saúde e educação.
Abraço
Nossaaa, eu não sabia que Angola tinha tantos atrativos assim. O post ficou ótimo e o vídeo fechou com chave de ouro!
Que lugar lindo! Quero muito conhecer a África! Difícil é saber por onde começar! Adorei seu texto, sua maneira de falar sobre viagem é encantadora! 😉
Uau! Que lindo o seu relato, deve ter sido uma experiência única, parabéns!! As fotos também estão incríveis, amei.
Você enganou-se ao dizer que não soube colocar em palavras o que sentiu! Pois me senti viajando e vivendo toda a emoção com vc!!! Que relato incrível!!!!
Muito obrigada, Cristina. É muito bom receber o feedback dos leitores.
Abraço
Viagens assim transformam mesmo a gente! Adoro esses tipos de relatos. Amei a sensibilidade do seu modo de escrita. 🙂
Grata, Dayane. E que transformação maravilhosa esta é!
Foi das nossas primeiras viagens juntos. Já conhecia Malange, mas só a cidade. Gostei muito.
Não visitei sequer a cidade. Que tal?
[…] Tenho a certeza que voltará diferente. Aliás, atrevo-me a dizer que, quanto mais distante for a cultura que visitamos da nossa, maior é a nossa mudança interior. Senti isso numa aldeia remota de Angola, aventura que podem reler aqui: Malange, a bruma que troveja e a pegada de rainha. […]