Atualizado em 5 Fevereiro, 2021

Guernica. Existem viagens trágicas e monocromáticas como o mural de Picasso. Existem viagens que nos obrigam a crescer, recordando-nos que este mundo, o nosso mundo, nem sempre é belo e feliz.

 Tirei do bolso as últimas libras, sobreviventes da nossa curta estadia na Beatles’ hometown, para pagar um chocolate no aeroporto de Liverpool. Mas um canto de livros em promoção chamou-me. A capa de Guernica sobressaiu entre a meia dúzia de obras que valiam a pena comprar. Uma breve leitura do resumo e decidi trazê-lo, por metade do preço de capa: metade de £10.99 = um achado!

Demorei alguns dias a ultrapassar o primeiro capítulo. Há mais de dois anos que não lia uma obra na sua língua original e comecei por tropeçar no inglês. Falta de prática. Mas, aos poucos, a fluidez regressou e embrenhei-me na história esquecendo a língua estrangeira.

Quando ouvimos a palavra “Guernica”, pensamos no dramático mural de Pablo Picasso! E depois na pequena aldeia basca, bombardeada durante a Guerra Civil Espanhola. Por esta ordem: a arte supera, na memória colectiva, a tragédia histórica que a inspirou. Este livro do jornalista americano Dave Boling aborda o conflito espanhol do ponto de vista da pequena e emblemática Guernica.

Os horrores do conflito estão lá. O fantasma da fome paira sobre os personagens, limpando a carne dos ossos e os princípios morais de muitos falantes do euskara. Mas esta não é (só) uma história de guerra. “Boling’s remarkably researched book is a humane and thoughtful narrative of genuinely good people in impossible circumstances”, descreve o painel que lhe atribuiu, em 2009, o prémio para melhor obra de ficção.

Foto da verdadeira Errotabari, em Guernica
A verdadeira Errotabarri. Alguns franquistas negaram o bombardeamento de Guernica.

No centro desta obra encontramos o intimidante Justo Ansogueti, forte como um touro, e a sua generosa esposa Mariangeles. Ambos trabalham com afinco pela prosperidade da sua terra Errotabarri. Depois, o autor apresenta-nos a filha, Miren, alegre e vivaz como uma borboleta, e Miguel Navarro, o pescador frustado que se torna carpinteiro. E emocionamo-nos com a história de amor entre os dois.

Aliás, quase sentimos o ritmo da música enquanto a graciosa Miren dança sobre um copo cheio de vinho, sem entornar uma gota. Surge também a tão bela quanto cega fabricante de sabonetes Alaia Aldecoa. E Dodo, o irmão de Miguel que, fugindo das garras da Guardia Civil, passa a fronteira passando a viver em França. E divertimo-nos com as aventuras de Dodo, que se torna contrabandista nos trilhos dos Pirenéus, transportando mercadorias, informações e pessoas (incluindo pilotos aliados).

Assim, quando o bombardeamento começa, no capítulo 17, estas pessoas já são velhas conhecidas. Vimos a filhinha de Miren e Miguel nascer, assistimos ao terno ritual nocturno com que a pequena Catalina é amamentada. E tudo se torna mais doloroso.

 

Numa tarde amena de Abril, dia de mercado, os sinos do convento tocaram com uma urgência inusitada. Pouco depois, os aviões da Legião Condor (que Hitler pusera às ordens de Franco) sobrevoaram a aldeia apinhada de gente e começaram a largar bombas. As casas, quase todas construídas em madeira, alimentaram os incêndios. O massacre durou 3 horas infernais e não poupou ninguém, nem as crianças nem o gado.

“Von Richthofen had been right; the people had been like sheep, clustering together in predictable patterns, exposing themselves on bends in the road and at the edges of wooded areas, as if foliage would block machine-gun fire. He had taught them an art”.

O bombardeamento, sem precedentes na história militar, pela quantidade de fogo aéreo lançado (mais do que em toda a I Guerra Mundial) deixou contudo intacto o símbolo de Guernica. Falo do carvalho sagrado onde os sábios se reuniam desde tempos imemoriais, para decidir o destino colectivo, numa atitude embrionária da democracia moderna.

Choramos então com Justo e Miguel, pelas suas perdas. Acompanhamos o primeiro, quando ergue uma trave sozinho para salvar a mulher do padeiro, acabando por perder um braço. Escavamos com Miguel as toneladas de entulho à procura das suas kuttunas, as suas meninas, mutilando as próprias mãos. Viajamos com o padre Xabier até Paris, onde ele descreve o acontecido aos jornalistas, ávidos de testemunhas credíveis.

Depois, partilhamos a raiva de Picasso perante os relatos dos jornais e assistimos ao parto (cerca de um mês mais tarde) da obra que haveria de expor na Exposição Internacional de Paris de 1937, ironicamente dedicada ao progresso e à paz. O mural a óleo ficou em Nova Iorque até à morte de Franco. Esta foi a vontade do pintor, que ordenou o regresso apenas quando Espanha fosse uma democracia. “El último exiliado” regressou a casa em 1981.

Por fim, assistimos aos tímidos indícios de cura, perante o retorno de Catalina que fora enviada juntamente com centenas de órfãos para Inglaterra. E terminamos o livro com uma pontinha de esperança no coração.