Atualizado em 9 Abril, 2021
Hossana, eeehhhh…
A melodia morna embala a manhã. Isabel ainda não tem 50 anos mas parece uma idosa, dos olhos negros parece espreitar uma alma centenária. E com o seu corpo enxuto de carnes, trabalha como se tivesse metade da idade.
Demorou mais de duas horas a atravessar Luanda. Lá nos subúrbios fica a sua casa, que construiu enquanto trabalhava para os sul-africanos, juntando cêntimo a cêntimo. Acabou despedida. “Os pobres têm sempre os filhos doentes”, ter-lhe-ão dito. Em nenhum ponto do planeta é fácil criar os filhos sozinha.
Isabel só tem dois, um rapaz e uma rapariga, e, por isso, é um espécimen raro numa sociedade em que ser mãe é a melhor identidade que uma mulher pode assumir. Vestiu essa pele quando tinha apenas 14 anos, logo depois de começar a namorar, porque a tia que a criou nada lhe ensinou da vida. A prole numerosa que devia ter tido esvaiu-se numa sucessão de abortos. Sobreviveram estes, porque lhe coseram o colo do útero.
O pai das crianças? A história repete-se até à exaustão nas ruas de África. Foi trabalhar para longe e acabou com uma segunda família. Até foi contido, alguns têm meia dúzia de “famílias”, que é o mesmo que dizer que têm filhos em cada esquina. Invariavelmente, são as mulheres que acabam a sustentar a prole.
Isabel não aceitou o marido de volta, tampouco voltou a casar-se. Também por isso, é uma mulher atípica. “A minha filha lagrima muito quando ouve a minha história“, conta ela, orgulhosa da sua futura engenheira do petróleo, que parece querer evitar a todo o custo um destino idêntico.
Tudo isto Isabel me conta por entre o café, como se nada fosse. As mulheres africanas têm uma força intrínseca admirável. Peço-lhe permissão para a fotografar. Acede, após um tímido protesto porque está de lenço na cabeça. Está linda, garanto-lhe eu, ainda a reflectir sobre a coragem que uma mulher em África precisa para sobreviver.
Alheia à minha admiração, ela regressa sem demora à sua lida e ao seu cantarolar. O seu cântico tem qualquer coisa de blues.
16 Comentários
Grande crónica, Ruthia, a cheirar a gente. E que gente!
Parabéns, minha amiga!
Fico feliz por ter gostado
Post notável, pelo texto e pelas fotos. Estou até com dificuldade para comentar, tal o impacto.
Grata. O seu blog também me deixa muitas vezes sem palavras…
Abraço Marta
Beleza em tuas palavras e realidade bem mostrada! bjs, tudo de bom,chica
Belo exemplo de mulher, que determinação!
Parabéns pela postagem, Ruthia!
Tenha uma excelente semana, abraços carinhosos
Maria Teresa
Muito obrigada, Maria Teresa. Uma linda semana para vc também
Ruthia,
Hoje quando eu falava sobre a síria em noticias e imagens (final da postagem do Blogzoom), eu me deparei por muito tempo em assuntos da Africa. É um continente de muita beleza e tambem de absurdos; os anos passam com conflitos, guerras, fome, doenças e violencia contra a mulher. Adorei este seu post, eu me senti lendo uma continuação dos meus sentimentos expressos hoje.
Bjs
Seu texto está lindo, Ruthia, ao enfatizar com doçura a realidade pouco doce da mulher africana que, a despeito de tudo, segue com seu canto e sua lida.
Tinha você razão ao afirmar a lindeza dela apesar do lenço na cabeça.
Abraço!
que lindo texto/crônica, querida amiga, parabéns…. me deixastes pensando sobre muitas coisas que costumamos reclamar…. e estas pobres mulheres ainda conseguem colocar um tímido sorriso nos lábios, mesmo com tanto sofrimento…. bjs desejando excelente semana… saudades
Bonita homenagem a estas mulheres diferentes das de Atenas.
Mulheres que amargam a vida e ainda assim canta em forma de lamento.
Uma bela mulher negra que o sofrimento impiedoso deixou suas marcas severas.
Lindo ter uma filha num caminho que pode refazer a historia tão comum das mulheres negras numa Africa sofrida.
Parabens Ruthia bela postagem.
Meu terno abraço e beijo de paz.
Aqui é carnaval e a cidade ferve,rsrs.
Sim, amigo mineirinho. A nova geração tem a oportunidade de mudar o rumo das coisas. Aliás, a União Africana declarou a década de 2010-2020 como a década da Mulher Africana para combater pobreza do género, promover a segurança alimentar, a saúde (nomeadamente ao nível da mortalidade materna e prevenção da Sida) e a educação.
Esperemos que dê frutos.
Abraço
OI RUTHIA!
QUE LINDO, FIZESTE A ESTA MULHER, TALVEZ A MAIOR HOMENAGEM QUE JAMAIS RECEBEU EM SUA SOFRIDA VIDA.
ELA ESBANJA A BELEZA COM A QUAL A PREMIASTE, ESTÁ NO OLHAR.
ABRÇS
Ruthia, é emocionante seu relato. Mulher forte, decidida, que segue seu caminho levantando-se das quedas sem olhar para trás. Realmente, parece ter mais idade. O sofrimento e a luta deixam marcas em sua pele. Mas há que usufruir do orgulho de ver a filha em uma realidade diversa. Bjs.
Vamos torcer que as novas gerações possam reverter a história das mulheres africanas, né??
Um relato de vida muito bom. Ser mãe sozinha sempre foi difícil em qualquer parte do mundo. Nuns lados mais difícil que noutros. África é uma terra maravilhosa, mas não para todos os seus filhos. Era assim quando colonizada pelos vários países que por lá andaram, e continua sendo-o agora, quando todos eles se foram.
Um abraço