Atualizado em 9 Abril, 2021
No Morro da Cruz, uma casa ergue-se, branca e austera, como nos tempos de D. Álvaro de Carvalho Matoso, capitão de Granadeiros, almirante das Naus Lusitanas das Índias, cavaleiro da Ordem de Jesus e traficante de escravos. Chegámos ao Museu da escravatura
Ondas de calor distorcem a paisagem, as próprias pedras parecem transpirar. Ao longe, a enorme língua do Mussulo separa o mar de fora do mar de dentro. A Casa Grande destaca-se no caminho para a Barra do Kwanza, mas poucos fazem o desvio para a visitar. E, no entanto, a sua capela acolhe um dos museus mais significativos de Angola: o Museu Nacional da Escravatura.
Que navio é esse
Que chegou agora?
É um navio negreiro
Trouxe escravos de Angola.
O espectáculo O Navio Negreiro, provavelmente inspirado no sublime poema homónimo de Castro Alves, fala de uma longa viagem no Atlântico que podia ter começado aqui.
Esta colina é a memória dos cinco milhões de luangos, malimbés, cabindas, congos, ngolas, mundongos, matambas e benguelas que perderam a vida graças à implacável rede de tráfico de escravos.
Eram “filhos do deserto / onde a terra esposa a luz“, explica o poeta brasileiro. Simples, fortes, bravos que foram transformados em míseros escravos. Eram mulheres altivas vindas de bem longe “trazendo com tíbios passos / Filhos e algemas nos braços / N’alma lágrimas e fel… “
Os escravos eram aprisionados sobretudo no interior de Angola, acorrentados e marcados com ferro quente, para serem facilmente reconhecidos em caso de fuga. Iniciavam depois uma longa e penosa caminhada para um dos portos do litoral, em caravana, amarrados como gado, antes de rumarem ao Novo Mundo.
Pedro Cardoso, num esforço imaginativo notável, consegue pôr-nos neste lugar trágico, em pleno século XVII:
“À volta da Casa Grande, um frenesim de gente aprisionada, cansada, suada. Massa negra uniforme na base do morro. A compasso lento, passo atrás passo, arrastados uns pelos outros nessa prisão de grilhetas, sobem a escadaria principal. O som metálico das cadeias prendem-lhe os movimentos; os gritos dos traficantes de Homens silvam; chibatas flagelam as costas, pernas, cara e braços da gente assustada (…)
Imaginem, agora, os barcos ao largo, no mar alto. São os navios negreiros. Levarão no seu porão de morte lenta toda esta gente encafuada. Durante semanas, cruzarão o grande oceano. E o horizonte para lá do Mussulo, arde em fogo vivo e desespero.”
Onde antes se amontoavam traficantes e africanos capturados no interior da colónia, sucedem-se agora salas que recordam o negócio criminoso: mapas e estatísticas, miniaturas dos barcos, gravuras e fotografias, grilhões e outros instrumentos de humilhação.
Num canto, a pequena e triste pia baptismal onde, à força de Pais-nossos e água benta, se converteram aos milhares, passando a chamar Deus a Nzambi. Chamavam-lhe a sagrada missão evangelizadora.
Mais uma vez evoco O Navio Negreiro (1869), de Castro Alves, para descrever a jornada que os aguardava de seguida:
“Era um sonho dantesco… o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros… estalar de açoite…
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar…
Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!
E ri-se a orquestra irônica, estridente…
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais…
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos… o chicote estala.
E voam mais e mais…
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!”
Ainda que evoque tristes e longínquas lembranças – a escravatura no reino de Portugal foi oficialmente abolida em 1836 -, lugares como o Museu da Escravatura são fundamentais para nos animar na luta por um futuro melhor. Como um dia o grande Mia Couto me disse (recordem o encontro aqui), este mundo nem sempre é um lugar bonito. Mas que seja, pelo menos, livre.
Dica: a entrada no museu da escravatura é gratuita. No entanto, é tradição dar uma gratificação ao guia, no final da visita.
20 Comentários
A "catequese" dificilmente ia além do batismo forçado. Mas, como disse no começo do Século XIX o padre Ayres de Casal, era a própria escravidão que tornava impossível que os escravizados fossem bons cristãos. Genocídio é a única palavra que define com alguma exatidão esse longo processo de aprisionamento, morte e/ou escravização de milhões de africanos.
Que bom poder voltar e estar aqui novamente ,vendo tantas coisas legais que mostras! Um beijo, tuuuuuuuuudo de bom,chica
Muito bonito parabens! Isso faz parte da
historia do brasil mas ao mesmo tempo é muito triste muito triste o quanto que essas gente sofrerão ?
Ruthia, que viagem!
Emocionante. Realista, também. Há passados que devemos absolutamente lembrar…
Beijinhos!
Das maiores máculas da História.Castro Alves retratou muito bem, em Navio Negreiro, esse período tão longo e triste. O Ceará, no Brasil, foi o primeiro estado a abolir a escravatura, em 1884, quatro anos antes da Lei Áurea de 1888, assinada pela Princesa Isabel. Na cidade de Redenção-CE, há o Museu da Abolição. Parabéns, Ruthia, pela excelente postagem: uma merecida homenagem, aqueles que tanto sofreram.
Beijo!
Muito bom este seu post. Sempre que leio sobre a escravatura fico horrorizada. Como foi possível, condenarem-se milhares de pessoas a uma tal sorte.
Um abraço
Mia Couto sempre me emociona…
Eu sou completamente inconformada com essa estória da escravatura! Por que meu Deus!!! Como o ser humano pode ser tão cruel e insensível!
Não sei se gostaria de visitar um lugar destes…Da uma tristeza imensa…
bjussssss
Olá Ruthia!
Certamente, muitos dos escravos no Brasil vieram de Angola e tantos outros países africanos (ah, que vergonha deste passado terrível de meu país!)
Sou apaixonada pela Africa em geral, que sorte a sua estar tão perto….
Beijinhos
Bia <°(((<
Acho que é uma mácula na História que afecta todos os seres humanos, e não apenas esta ou aquela nacionalidade. Os europeus têm uma quota de responsabilidade enorme mas, por outro lado, os próprios africanos vendiam os seus conterrâneos.
Agora nada nos impede de aprender com os erros do passado, para que não se repitam…
Ruthia,
O nordeste brasileiro tem muito a mostrar do que um dia foi este país.
Acho deplorável esta passagem da historia, mas devemos lembrar que tambem no Egito antigo haviam e eles ajudaram nas construções das relíquias. E ainda hoje, em alguma parte do mundo, há.
Bjs
Ruthia e o encanto do Pedrinho desbravador. Lindos!
Navio Negreiro eu decorei para recitar alguns trechos no tempo de colégio. Naquela época em que a Língua Portuguesa era tratada com todo o respeito, nós, os alunos pré-adolescentes, dávamos um show quando nos apresentávamos recitando poesia. Me lembro como se fosse hoje… Saudades!
Que tempos insuportáveis da escravidão, meu Deus! O local ainda deve ter ar de choro, de lamúrias e muita incompreensão por aqueles que se imaginavam bicho mesmo sabendo ser humanos como qualquer um outro.
Beijos, querida!
oi amiga querida…mais um passeio lindo e uma aula de história e cultura, obrigada. fico admirada em ver que até ao falar em escravatura, tu o fazes de maneira poética, tornando o assunto ameno e gostoso de ler… o céu de brigadeiro diz-se para dia de céu azul, sem nuvens, limpo, ótimo para voos.
"A origem da expressão se assenta em uma antiga prática existente entre os membros da Força Aeronáutica. Na hierarquia dessa instituição militar, o brigadeiro ocupa o mais importante posto de comando da Aeronáutica. Geralmente, em razão de sua importância, esse oficial só faz voos quando o céu apresenta condições favoráveis.
A popularização do “céu de brigadeiro” aconteceu na medida em que os locutores de rádio das décadas de 1940 e 1950 tomaram conhecimento de tal prática militar. Sendo um veículo de comunicação onde as palavras têm grande impacto, vários locutores acharam interessante dizer que o dia tinha um “céu de brigadeiro”. Inicialmente, a curiosa gíria ganhou fama no Rio de Janeiro que, na época, ostentava o posto de capital do país e concentrava grande parte dos voos aéreos realizados."
beijos desejando ótima semana
Não precisamos "pintar" tudo de negro. Claro que há factos que me deixam triste, mas podemos tirar lições de história sem grandes dramas, não achas?
Obrigada pela explicação sobre o "céu de brigadeiro". Adorei saber.
Beijinhos
Mesmo tendo esse triste capítulo da história que açambarca nossos países marca revoltante, acham-se enormes feitos e inegáveis criações pelas mãos escravizadas.O que nos dá a pensar se estas mesmas mãos estivessem em seu livre criar, neh mesmo!
A história veio por aqui numa aula clara e poética, Ruthia, finalizada com a fala pontual de Mia Couto.
Bjos,
Calu
A frase de Mia Couto traduz a grande aspiração de todos os seres humanos. A escravatura deixou marcas que ainda hoje são visíveis. Infelizmente, faz parte da história e inspirou grandes escritores e poetas. Sua postagem, como sempre, contém uma abordagem magnífica, com imagens ilustrativas de locais que não conheço e que tenho prazer de ver, ainda que através de fotos. Bjs.
Olá Ruthia, eu sempre me refiro a esta como uma pagina infeliz de nossa historia manchada de sangue e suor dos negros. Rever estes pontos é mergulhar nesta covardia da escravidão, que ainda hoje deixa por cá suas marcas e creio que por muitos anos ainda perdurará.
Uma postagem rica amiga com estas perfeitas inserções com Castro Alves.
As imagens nos levam a mergulhar na historia.
Grato pela partilha com historia.
Um bom e lindo fim de semana.
Meu terno abraço e beijo paz amiga.
Um post e pêras, Ruthia, onde as palavras fluem, como água no rio, com o essencial a destacar-se, naturalmente. Os meus parabéns!
Um beijinho 🙂
Como brasileira, sinto que tenho sangue angolano e penso como sofreram todos que vieram para cá. Post delicado e preciso! Parabéns, Ruthia!
Abraços,
Ana Christ
http://www.nativosdomundo.com.br
"Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval", diz Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropófago. Lembro imediatamente desse trecho ao ler o parágrafo em que você fala na "pequena pia batismal". Dá para sentir ali certa amargura (plenamente justificável) em suas palavras diante da ironia de se sacralizar uma violência. Nzambi na África; no Brasil, Oswald explica: “É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à ideia de Deus. Mas o caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci”.
A conversão é um processo espiritual, de dentro para fora, por isso não há como "aplicá-la" à força a ninguém. Pode se dar o nome que quiser a isso, "missão evangelizadora" ou qualquer coisa assim, mas ainda será violência se não nascer da consciência e da vontade de quem se converte. Por isso as palavras do Mia Couto soam tão consoladoras ao final do texto (e, ao citá-las, mais uma vez você demonstra que maneja bem as palavras). Se a beleza nem sempre é possível, que ao menos tenhamos liberdade.
Amei!
Esse, na minha opinião, é um dos mais importantes museus do mundo. A escravidão é, ainda hoje, ferida aberta; e a julgar pelo mergulho cada vez mais profundo do Ocidente rumo ao conservadorismo moral e atraso civilizatorio, essa ferida não vai fechar à curto prazo. Muito obrigado pelo excelente trabalho no site.