Atualizado em 17 Fevereiro, 2021
Na esquina entre o Cantábrico e o Atlântico, uma mítica torre é disputada por Hércules e Breogán, numa batalha eterna sem vencedores ou vencidos. Existe apenas um soberano: o mar
Um mar imenso, esmagador, que domina a paisagem e atrai o nosso olhar uma e outra vez, ali na costa mais a norte da Península Ibérica, numa cidade que tem uma torre no seu escudo.
Não é uma torre qualquer, mas o farol romano mais antigo do mundo a funcionar, luz da Galiza e património da Humanidade, rodeado por um parque de esculturas delicioso e lendas mirabolantes, que se destaca num dos mais longos passeios marítimos da Europa.
Uns dizem que a Torre foi erguida pelo celta Breogán, o mítico colonizador da Irlanda. Conta o Livro das Invasões que o seu filho dali vislumbrou, pela primeira vez, a verdejante costa irlandesa, o que levou o Povo de Mil em busca daquelas terras [ainda que a inclinação do globo torne a lenda improvável].
O rei Alfonso X, na sua Estoria de Espanna, narra outra versão, com uma intenção claramente política de ligar Hércules à monarquia espanhola. A estória contada com minúcias de fabulista diz que o herói grego chegou à Corunha logo após cumprir um dos seus 12 trabalhos: cortar a cabeça ao gigantíssimo e tiraníssimo Gerião. A cabeça do polvo, pois de um molusco se tratava, terá sido enterrada naquela ponta da Ibéria.
Outros trabalhos chamaram Hércules, que ali deixou o seu sobrinho Hispán como senhor da cidade, a quem coube terminar a torre com um fogo que nunca se apagava.
Vá. A única certeza é que este farol é romano, foi projectado por um arquitecto de Coimbra no século I por ordem do imperador, para ajudar os navegantes nesta costa bravia e rochosa.
Conquistamos esta torre de Hércules, de Breogan, mas sobretudo dos galegos, incluindo Picasso que aqui passou a sua infância e a baptizou de “torre de caramelo”, vencendo os 232 degraus. Do topo, abre-se-nos o olhos de mar e céu, tudo numa imensidão azul, enquanto pequenas formigas humanas cruzam os trilhos aos pés do farol, atraídas por uma bela Rosa dos Ventos.
Nosce te ipsum
Os amigos e leitores conhecem bem a minha paixão por zonas históricas mas, na Corunha, é a costa que nos atrai ao longo de vários quilómetros. Do curto passeio ao coração da cidade vos falarei noutro episódio, porque temos outra paragem obrigatória no passeio marítimo: o Domus. A Casa.
O edifício de pedra parece a vela de um navio, ali em frente ao mar, pronto a zarpar. O japonês Arata Isozaki [aparentemente um dos maiores arquitectos da actualidade] desenhou este que é o primeiro museu interactivo dedicado ao ser humano, inspirado no aforismo de Platão nosce te ipsum, “conhece-te a ti mesmo”. Sem um acervo esmagador, o espaço é sobretudo inesperado, com dezenas de jogos e experiências.
Há ali vida, pode até sentir-se o pontapé de um bebé numa barriga sintética, assistir ao vídeo de um parto [“que nojo”, foi a expressão crua do meu filho, ao assistir, pela primeira vez ao milagre da vida] e entrar num coração gigante de madeira, onde as batidas reverberam sonoras. Há também morte, como bem recorda o esqueleto azul na posição d’ O Pensador de Rodin.
Há ali evolução: podemos tirar uma foto com os primos neanderthal, erectus e australopiteco. Há ali genética, como nos prova uma Mona Lisa gigante criada a partir de 10 mil rostos humanos, todos eles diferentes, apesar de partilharmos 99,8% dos genes hereditários [chamam-lhe a Gioconda Sapiens!!!]. Há ali inteligência e até vemos um cérebro humano dentro de um frasco.
Um espaço divertido para famílias. E não é que saímos mais conhecedores de nós mesmos?
Torre de Hércules: site | Bilhete: 3€ (adulto), 1,5€ (criança)
Domus – Museu do Homem: site | Bilhete: 2€ (adulto) | 1€ (criança)
19 Comentários
Finis terrae… Não há melhor lugar para lendas.
Não conheço o local, logo o meu passeio foi pelos seus olhos. Obrigado por mo proporcionar. O museu pareceu-me muito interessante. Quem dera poder ir visitá-lo.
Um abraço
Uma verdadeira aula de história com fotos maravilhosas!Adorei! beijos, bom te ver!chica
Mais uma aula de mitologia, querida Chica.
Obrigada pelo carinho, sabe bem estar de volta. E vocês como estão?
Abraço
Ruthia, já sentia falta de seus posts, amiga querida! Por coincidência, também ando às voltas com as histórias (e estórias) da Espanha e os deuses gregos!
Como eram poderosos esses romanos que deixaram seus "tentáculos" por toda Europa, não? Fico impressionada!
Sempre muito bom ler seus escritos!
Um beijinho,
Ana Christ
Agora que tenho uns minutos para respirar (finalmente) prometo ir espreitar as suas experiências de Espanha. Os romanos estão completamente entrelaçados na nossa história. Definitivamente
Beijinhos
Mitologia, lendas, monumentos que nos revelam as disputas de gigantes e a enorme perícia de quem os projetou e construiu!
"Conhece-te a ti mesmo" inspirado em Platão, que permite a interatividade, deve ser surpreendente e até causar "nojo", reação do Pequeno Explorador, mas com certeza, ele guardará para sempre em sua memória essa fabulosa experiência.
Nos dá prazer em conhecer, Ruthia, lugares com a sua descrição que nos faz parecer que estamos ao seu lado, obrigada pela partilha!
Tenha um excelente domingo, abraços carinhosos
Maria Teresa
Nunca é uma experiência fácil ver um parto, ainda que em vídeo. Recordo-me que fiquei muito impressionada com o acontecimento, da primeira vez que assisti a tal espetáculo, quando era adolescente (também em vídeo, porque ao vivo seria ainda mais impressionante)!!!
Beijinho
Ola Ruthia, que bela postagem esta.
Imagino ver este mar neste ponto, deve ser fantastico amiga.
Gosto destas curiosidades da historia e das lendas.
Este museu deve ser o máximo e o pequeno de frente para a vida,kkkk.
Um bom fim de semana e tudo de bom para voces.
Meu abraço
Bjs de paz amiga.
Além de arrebatador, o local é surpreendente pela sua constituição histórica antiga e contemporânea.Uma ponte entre o mítico e o real cercada de belezas estonteantes.Se já as fotos me despertaram emoção , o que direi da experiência vívida por estas paragens.
Passear por aqui é renovar emoções, Ruthia.
Belo domingo, ótima semana pra vc.
Bjo,
Calu
Obs: Estamos na sintonia das árvores 🙂
Em breve partilho uma foto na posição da árvore… talvez no IG? Veremos!
Bom domingo, querida Calu
saudades de me deliciar e deleitar ao ler tuas tão harmoniosas palavras e teu aula de cultura/história/vida/locais/viagens…. Saboreei cada palavra… fiquei a me imaginar mais Ali a visitar tão curioso e interessante local! Obrigada querida amiga, por mais este acréscimo no meu intelecto! bjs
ah! e a campanha política nem parece campanha política.. com as novas leis impostas, tudo está na maior calmaria, até porque nada se pode fazer.. tudo é proibido.. resta-nos poucas postagens no facebook, que não sejam comprometedoras, sejam suaves e demonstrem trabalho… sem perspectiva até o momento.. mas serve de lição, no mínimo! bjs
OI RUTHIA!
UM PASSEIO REPLETO HISTÓRIA E CONHECIMENTO COMO DISSESTE, CONHECIMENTO DE NÓS MESMOS.
MAS, O QUE MAIS GOSTEI FOI A FOTO DO PEQUENO PENSADOR ALI SENTADINHO.
ABRÇS AMIGA E BEIJINHOS AO PEDRO.
É muito bom viajar consigo, cara Ruthia. Vemos e sentimos tudo como se ali estivéssemos. E a informação que nos transmite, de uma forma precisa e quase coloquial, leva-nos a desejar voltar e continuar a viagem aqui no "Berço do Mundo", onde tudo acontece.
Bj
Olinda
Olá Ruthia!
A história é fantástica e o lugar, que até então não conhecia, parece magnífico! É o tipo de viagem que adoraria fazer, sem dúvida nenhuma. A família de meu avô veio da Galícia para o Brasil em 1910, e sempre ouvi histórias bem legais de lá. Que bom que nos trouxe mais esta informação preciosa, pois vou guardá-la para a minha próxima viagem a Portugal (com uma esticada à Galiza!)
Beijinhos e bons ventos por aí <º(((<
Bia
Uma esticada à Galiza é uma excelente ideia. Mas primeiro, uma paragem no berço de Portugal, para tomar um café e comer um docinho regional comigo!!
Beijinho
Ruthia,
Para mim uma viagem só faz sentido se for devidamente enquadrada no contexto histórico, polvilhada com hábitos e costumes, paisagens, equipamentos… E isso a Ruthia faz muito bem, como se prova, mais uma vez, com este salto até aos confins da Galiza que, há algumas centenas de anos atrás, eram os confins do mundo.
Para quem, como eu, tanto gosta da Galiza, esta reportagem esteve à altura. Parabéns!
Os portugueses têm muito em comum com os galegos. Daí gostarmos tanto destas paragens.
Abraço