Atualizado em 10 Novembro, 2021
Sabem aquela história da “pobreza franciscana”? Não se aplica a este templo católico, sobejamente conhecido pela nada humilde quantidade de ouro. Mas há muito mais para descobrir na Igreja Monumento S. Francisco de Assis
O principal templo gótico do Porto é conhecido pelo interior exuberante. A talha dourada – joanina rocaille, para quem gosta de saber todos os detalhes arquitectónicos – cobre por completo a estrutura, o altar, os pilares, incluindo uma das mais belas árvores de Jessé que restam no país e até o tecto. Há quem fale de 600 kg de ouro, mas a Venerável Ordem Terceira de S. Francisco remete-se ao silêncio sobre o assunto.
Deslumbrado, o conde de Raczinsky, diplomata prussiano extremamente culto e famoso coleccionador, descreveu-a como a igreja de oiro, acrescentando que a riqueza e beleza da talha ultrapassava tudo quanto vira em Portugal e no mundo.
O nascimento desta igreja-museu não foi fácil. Os franciscanos chegaram à cidade invicta no século XIII com autorização do Papa para construírem um convento. Mas o bispo de então não queria saber de nada disso. Excomungou quem ofereceu o terreno para a construção, mandou destruir o pouco que já estava feito e considerou os frades não só hereges como “gente prejudicial ao mundo”… Feitiozinho!
Veio o arcebispo de Braga mediar as partes e as obras lá recomeçaram. Mas a tragédia não ficou por aqui. Um incêndio durante o Cerco do Porto reduziu a cinzas a casa dos franciscanos e, extintas as ordens religiosas, a rainha D. Maria II ofereceu as ruínas do convento aos comerciantes (recordem a visita ao Palácio da Bolsa aqui). Restou a igreja.
Pensam que a novela acabou? Com a fuga dos frades, sabem o que aconteceu à igreja? Foi abandonada, depois serviu de armazém da alfândega e esteve quase para ser demolida. Sim, sim. Um projecto para alargar as ruas até ao rio pretendia destruir o templo onde repousam as grandes figuras do Porto renascentista. Mas os franciscanos pediram a intervenção da rainha e felizmente não aconteceu.
Mais tarde, a igreja acabou classificada como monumento nacional, depois foi integrada na área Património da Humanidade e hoje é um dos monumentos do Porto mais visitados… por estrangeiros.
Descida às catacumbas
Antigamente toda a gente queria ser enterrada no interior das igrejas. Quando o espaço ali acabava, usava-se o pátio de acesso. Claro que o altar principal ou as capelas com relíquias de santos eram apenas para os mais ricos, os únicos que tinham direito a lajes gravadas. Ainda dizem que depois de mortos somos todos iguais…
Os cemitérios públicos apareceram no século XIX em Portugal, mas o povo não achou piada à ideia de ser sepultado em terreno não sagrado, o que motivou mesmo uma revolta popular seguida de uns meses de guerra civil: a revolução da Maria da Fonte, iniciada no Minho.
As ordens religiosas do Porto também não gostaram dessa modernice e recusaram-se a fechar os seus cemitérios até que a cólera e o cerco à cidade as obrigou a isso. Por volta de 1855, a Venerável Ordem Terceira de S. Francisco comprou terreno no recém-criado cemitério municipal (Agramonte) e criou uma espécie de cemitério privado no recinto, contornando assim a lei.
Mas nas entranhas da Igreja de S. Francisco ainda vislumbramos esse tempo em que o solo religioso era usado como morada eterna. As paredes estão forradas com gavetões onde os caixões eram arrumados de lado. São todos iguais, com um número, nome do falecido e data gravados.
No chão, grandes rectângulos de madeira gasta baloiçam sob os nossos pés, ressoando a vazio. Por baixo estão enterrados os frades da confraria, anónimos, com um único número a servir de identificação. Numa das últimas criptas, uma velha grade coberta de vidro permite ver pilhas de ossos, partidos e amontoados. Com um pouco de paciência, distinguem-se ali vários crânios de irmãos que aguardam o Juízo Final sob o tecto protector da sua igreja.
Ao contrário do que aconteceu no Algarve, quando visitámos uma capela decorada com ossos (recordem a creepy chapel aqui), a morte já mexe com o pequeno explorador. Pelo que abreviámos a visita.
Os meus caros leitores já visitaram as catacumbas de alguma igreja? Como foi a experiência?
32 Comentários
Bom dia, Ruthia
Gostei muito desta visita guiada pela Igreja de São Francisco de Assis e pela sua história. Nunca passeei pelas catacumbas de uma Igreja. Este seu post suscitou-me uma grande curiosidade. Já tomei nota das informações aos fundo do texto. Muito obrigada.
Bj
Olinda
Uma Igreja impressionante e de uma grande beleza que não conhecia.
Um abraço e bom fim-de-semana.
Obrigada pelo passeio. Não eu nunca visitei nenhuma catacumba de igreja. Para ser sincera nem sabia que existiam, pensei que depois da proibição de enterrar os mortos nas igrejas, os túmulos tinham sido transladados para os cemitérios, excepto claro os dos Reis.
Abraço e bom fds.
Vamos por partes rsrssss
1) Certíssima a proibição de fotografar o interior da igreja, porque o uso do flash degrada o ouro;
2) Achei muito interessante que tenha chegado a haver um movimento contra a proibição dos sepultamentos em igrejas! No Brasil a proibição começou (coincidência?) durante a permanência de D. João VI no Rio de Janeiro, mas a moda demorou a pegar. Com o tempo, razões de higiene suplantaram a teimosia dos que achavam que um enterro em uma igreja iria deixá-los mais perto do céu;
3) Sim, já visitei criptas, e devo dizer que são lugares ricos de interesse histórico, ainda que cheios de mofo. A curiosidade suplantou o incômodo…
* Belíssima a primeira foto (monocromática).
Por acaso estas catacumbas não são muito abafadas, nem têm cheiro a mofo! Mas já entrei noutras muito bafientas.
Quantas tradições más para a saúde pública não foram prolongadas no tempo por causa do hábito arreigado? As mentalidades não mudam de um dia para o outro.
Querida Ruthia
Vivendo tantos anos no Porto como vivi… mal parecia eu dizer que não conhecia a Igreja de S. Francisco…
Mas hoje é que fiquei a conhecê-la! E foste tu que me levaste de mão dada a fazê-lo.
Não sei se alguma vez te disse (é provável que sim…)que sou apaixonada por História. Podes, pois, imaginar quanto apreciei esta postagem.
Adorei!
Quanto à "pobreza franciscana" a Igreja de S. Francisco não lhe faz jus…
Obrigada pela partilha, querida.
Votos de um Domingo feliz
Beijinhos
É assim mesmo "casa de ferreiro, espeto de pau". Eu também não conheço todas as igrejas de Guimarães, e olha que não tem tantas como o Porto!
Beijinho. Um lindo domingo
Não conhecia. Um encanto. Só é lamentável os 4€ e o que se vai pagando neste país nestes locais. Para uma família de 4 pessoas, fazer fins de semana em visitas, tira a vontade, pois fica num balúrdio…
Boa semana.
Rui
Pois é, Rui. Acho que devia ser obrigatório todos os monumentos e sítios culturais terem preços especiais para famílias!
Muito bom seu texto. Adoro conhecer a história de cada cidade e de cada templo. Assim, quando você visita o local, a viagem é muito mais rica e proveitosa.
Eu amo visitar igrejas e catedrais, sou devota de SF (no meu site e instagram tem muito da historia dele e da cidade de Assis), mas confesso que essas catedrais cheias de ouro, apesar de Cristo não gostar, acho lindas.
Eu não sou religiosa, então visito igrejas ou templos pelo prazer arquitectónico e histórico. Evidentemente, essa igreja é linda, ainda que um pouco ostensiva, haha. Mas quem não gosta de lugares belos?
Oi Ruthia, adoro conhecer Portugal através de seu olhar. Conhecemos a Igreja de São Francisco no Porto, ela é maravilhosamente deslumbrante em sua riqueza e ostentação, que não combina nada com a pregação de humildade de São Francisco, hehehe. Aliás, em todas as Igrejas que visitamos em Portugal, observei que o altar de São Francisco é o mais ricamente decorado em ouro, achei curioso isso. Conhecemos as catacumbas da Igreja, tirei um monte de fotos dos gavetões. Temos muito de Portugal por aqui. Somos filhos de Portugal com certeza, apesar da imigração maciça de outros povos que mais tarde vieram para cá. Abs
Verdade, ainda hoje li um post belíssimo sobre um roteiro perto de Assis que recupera os passos de S. Francisco e que destaca tantos gestos muito eloquentes quanto ao seu despojamento…
Que demais! Eu vou conhecer Portugal em 2 meses e foi um presente ver esse seu post com tanta história e detalhes. Obrigada!
Quanta coisa esse lugar passou até chegar ao ponto de estar em um post! Rs… ainda bem que tiveram sucesso na manutenção da igreja. Já visitei criptas em igrejas e sempre acho a sensação estranha. Mas muitas vezes tem tanta história no lugar que acaba valendo a pena.
Oi Ruthia,
primeiro desculpas pela ausência. A vida offline estava demais estes tempos!
Mas cá estou, porque primeiro andava com saudades, segundo porque desde que vi a chamada desse post no Twitter, fiquei curiosa pra ver essa igreja de ouro por dentro. Templos religiosos são uma queda minha, você já sabe. E por um momento não lamento esses exageros, porque quase sempre me encanto por essa beleza sem tamanho. É ouro demais? Com certeza! Mas que bela que ela é também, essa igreja!
E quanta história einh? Entre idas e vindas, estou feliz que o templo manejou de sobreviver a tantos atropelos históricos.
Portugal mais uma vez me convidando para uma viagem! Quando será esse encontro? 🙂
Não se preocupe. Eu sei que há vida real, fora da blogosfera, haha.
Os exageros arquitetónicos proporcionam-nos sempre momentos de grande prazer.
Beijinho
Ruthia,
Não sou religiosa, mas aprecio observar ricos detalhes arquitetônicos de igrejas e catedrais, verdadeiras obras de arte.
Incrivel a historia desta qeu voce apresentou, uma sobrevivente ao tempo e ao ser humano! Que bom, porque aqui no Brasil algumas importantes construções viraram pó e incomodam ate hoje os Cariocas, tais como o Palacio Monroe e o Morro do Castelo.
Bjs
Realmente uma sobrevivente e luxuosa, Sissym! É importante cuidarmos do património, são testemunhas do nosso passado colectivo.
Vou te falar bem a real que lugares assim me causam sensações estranhas. Quando o ponto turístico envolve morte e corpos eu ja fico aflita hahaha. Mas é sempre bom sentir aquela adrenalina na viagem né? Gostei da dica!
Confesso que não gosto de visitar muito lugares com catacumbas, ou afins. Mas por um tour desse até vale a pena tentar fazer o passeio e não pensar nisso haha. Obrigado por compartilhar essa dica
Que incrível o interior da Igreja de Oiro! Fiquei apaixonada. Adoro conhecer as catacumbas das igrejas. Parabéns pelo post e pelas fotos!
Que linda, que riqueza de detalhes. Muito boa dica para incluir no roteiro de nossa viagem para Porto. Edson
Quanta curiosidade espalhada por ai, fala verdade. Adorei o post que está recheado de detalhes. Parabéns!
Já visitamos catacumbas em Buenos Aires, lá inclusive tem a cerimônia da troca da guarda no local. Adoraria visitar a igreja de São Francisco, já que por aqui temos uma relação muito forte com esse santo que dá nome ao principal rio do Nordeste brasileiro.
Nossa, que história triste por trás de uma igreja tão linda. Sem dúvida vale a visita para conhecer melhor esse lugar.
Quanta história tem essa igreja! Ela é lindíssima. Adorei saber tudo sobre ela e fiquei pensando que infelizmente tanto ouro veio das colônias, como o Brasil.
Adorei o post com o riqueza de detalhes e fotos que ilustram e dão vida. Deu muita vontade de conhecer.
600kg de ouro??? Quanta tragédia e história marca essa igreja. E que coisa mórbida os ossos amontoados!!!
RUTHIA!! QUE COISA MAIS LINDA! NÃO FAZIA IDEIA DA EXISTÊNCIA DE UMA IGREJA TÃO LINDA ASSIM NESSA CIDADE! REALMENTE, PRECISO REGRESSAR! HÁ MUITO A SE CONHECER! ESTOU MARAVILHADA!
Cris, é tão bom termos argumentos para regressarmos aos lugares onde já fomos felizes, né?
Beijinho
Como já tinha comentado, não tinha conhecimento de que nevava assim em Portugal, a serra fica magnífica, que lindo tudo branquinho!