Atualizado em 27 Fevereiro, 2023
O tempo parece ter congelado na primeira das quatro cidades imperiais. Chegamos a Fez, o centro cultural e espiritual de Marrocos
Final da tarde. Na tranquilidade do riad, espera-nos tâmaras e leite de cabra aromatizado com flor de laranjeira. O gesto de boas-vindas revela muito sobre este lugar milenar que se junta a Marraquexe, Rabat e Meknes no conjunto de cidades imperiais. Alguns costumes mantêm-se como no século oitavo, quando Fez foi fundada.
O passado faz parte desta cidade magrebina, que o abraça, preservando tradições bem antigas. Por isso, uma visita a Fez é uma experiência cultural única.
Os minaretes que irrompem o horizonte, o chamamento para a oração que ecoa nos altifalantes, os talismãs que nos protegem do mundo invisível dos djinns, as mulheres berberes de rosto tatuado. Tudo isto empresta uma aura misteriosa a Fez, que nunca chega a desvendar-se por completo.
O dia seguinte começa na Borj Sud, a torre sul que permite uma visão panorâmica sobre Fez. A luz da manhã empresta uma falsa quietude à cidade. Lá em baixo, Fez borbulha de actividade. Em breve mergulhamos no caos da medina que a Unesco classificou como património mundial da Humanidade (1981).
A principal entrada para a cidade muralhada faz-se atravessando os arcos do majestoso Bab Boujloud (portão azul). Mas Abdelkader Malal, o nosso guia sexagenário, conduz-nos por uma porta alternativa. Começa verdadeiramente a nossa odisseia pela alma de Marrocos.
Um labirinto medieval
Um mundo novo abre-se perante os nossos olhos, quando adentramos em Fez el-Bali, a labiríntica medina com mais de 9000 ruas. Somos assaltados por cheiros, sons, cores e movimentos, numa sobrecarga sensorial que nos deixa inicialmente atordoados.
Vemos lindos sapatos em pele e, ao lado, a cabeça de um camelo pendurada. Mulheres que cozinham warka e gatos que se empanturram com restos. Janelas lindamente trabalhadas e estacas de madeira que evitam que edifícios antiquíssimos caiam sobre as cabeças de quem passa.
Dizer que é uma das maiores zonas urbanas do mundo sem carros, é um tanto eufemístico. Porque burros, carroças e motorizadas atravessam as ruelas com autoridade.
– Balak, balak! – o grito de aviso só nos apanha desprevenidos uma vez. Depressa aprendemos que nos devemos refugiar na parede mais próxima.
A desorganização é aparente. A cidade antiga foi feita em anéis concêntricos que conduzem ao coração da medina, onde se reúnem os lugares sagrados. Ali fica uma das maiores mesquitas de África, que os estrangeiros podem apenas vislumbrar, e a Universidade Al Quaraouiyine (ou Al-Karaouine) que consta no Guiness como a instituição de ensino mais velha do mundo.
Consta-se que as bibliotecas desta universidade (criada por uma mulher!!) possuem documentos valiosos e, em breve, serão abertas ao público. Argumento suficiente para eu voltar a Fez…
A linda arquitectura árabe
Chegados ao coração da medina, encontramos a madraça al-Attarine, criada no século XIV pelo sultão Abu Said. Esta escola islâmica testemunha o talento artesanal marroquino. Projectada como um anexo à mesquita e à universidade, a madraça é qualquer coisa de assombroso. Especialmente o pátio, onde detalhes de madeira e gesso esculpidos brincam com os mosaicos num caleidoscópio de padrões.
Esta exuberância contrasta com a austeridade do local de oração e também com os aposentos dos alunos, nos andares superiores. Subindo até lá, vislumbramos os telhados verdes da universidade e uma perspectiva diferente dos souks.
Outro ponto essencial para os apreciadores de arquitectura será o Palácio Real. Ainda que o complexo, onde se inclui palácio e jardins, seja fechado ao público, dizem que a fachada merece a viagem. Infelizmente, não tivemos tempo para ir espreitar a monumental porta de bronze, a partir da Praça Alaouites.
O ritmo dos artesãos
Grande parte do charme da velha cidade reside nos artesãos que preservam tradições ancestrais, transformando a medina num museu vivo. Tecelões numa antiga caravanserai mostraram-nos como fazem tapetes e lenços de lã ou seda vegetal, a partir da fibra dos cactos.
Os tintureiros trabalham em fogueiras improvisadas. Os latoeiros alegram a Praça Seffarine, numa cacofonia ritmada quase musical. E depois chegamos à zona dos curtumes.
As tanneries de Fez são talvez as mais famosas de Marrocos. Para lá chegar, basta seguir o nariz, dizem. Tenho sérias dúvidas sobre tal método, mesmo em dias quentes, tendo em conta o meu fraco sentido de orientação… com ou sem olfacto.
Subimos a um dos muitos terraços com vista para as tanneries com um raminho de hortelã, providencialmente oferecido para mascarar o odor. Visitar os curtumes de Chaouwara ou Chouara é uma experiência marcante. O trabalho ali é árduo e integralmente artesanal. Os trabalhadores passam muitas horas dentro dos tanques com compostos químicos, para amaciar as peles e depois as tingirem.
As peles – de cabra, de vaca, de camelo – ficam depois a secar, antes de se transformarem em muito do artesanato que se vende nos souks e nas lojas com terraços, como a que entramos.
Um pouco mais de Fez
Ainda que a medina seja uma experiência memorável e a principal atracção de Fez, a cidade não se esgota dentro das muralhas. Gostaria de ter explorado ainda o Fez Mellah, o bairro judeu, com a sua sinagoga e cemitério, com os seus edifícios de grandes janelas/varandas abertas para a rua. Esta arquitectura contrasta com a marroquina, de janelas discretas e pátios interiores, que favorecem a privacidade.
Um pouco mais afastado, no topo de uma colina a norte, encontram-se vários túmulos merínidas, a dinastia berbere que dominou grande parte do Magrebe entre os séculos XIII e XV. Há várias estórias sobre estes túmulos, ou o que resta deles. No entanto, parece que o melhor é mesmo a vista.
Outro lugar que gostaria de ter visitado (tínhamos o tempo contado) é o Fondouk el-Nejjarine, uma caravanserai do século XVIII transformada em museu. O edifício ao estilo andaluz fica perto do souk dos carpinteiros e homenageia as artes decorativas em madeira.
Dicas úteis
- O ideal é visitar Fez na Primavera e Outono. O Verão é bastante quente e, para além disso, as cidades mais turísticas podem estar apinhadas de turistas (Marrocos fica muito próximo da Europa, daí ser procurado também como estância balnear). No Inverno, pode estar bem frio. Estive lá no início de Abril e usei um casaco quente.
- Os turistas podem ser assediados por falsos guias turísticos em Fez, como noutras cidades marroquinas. Se quiser um guia, opte por um credenciado.
- Fez é uma cidade tradicional, pelo que as mulheres deverão ter algum bom senso na forma de se vestirem, sobretudo se viajam sem guia.
Como chegar
- De avião: o aeroporto Fes Saiss recebe voos internacionais de vários pontos da Europa, incluindo a TAP, a Ryanair e a Air Maroc. O aeroporto fica a cerca de 15 km do centro, pelo que deve apanhar um táxi ou optar pelo transfer do hotel até ao centro da cidade. Existe também uma linha de autocarros, sobre a qual não sei dar mais informações. Se alguém já usou, pode relatar a sua experiência nos comentários abaixo, para benefício de outros viajantes.
- De comboio ou autocarro: é possível chegar a Fez de comboio de algumas cidades marroquinas (por exemplo, desde Tânger, Casablanca ou Rabat). Consulte horários e preços no site da ONCF. A alternativa será o autocarro, com as empresas CTM ou Supratours.
Onde ficar
Esqueça os hotéis ao estilo ocidental. Escolha um riad tipicamente marroquino, a palavra remete para o jardim interior tão característico na arquitectura andaluz-árabe.
Nós ficámos hospedados na La Maison Bleue Batha (foto acima), um encantador riad do século XIX transformado em hotel. Localizado a dois passos da medina, o riad possui uma decoração muito autêntica e cheia de lindos detalhes.
Infelizmente as temperaturas de Abril não permitiram usufruir da piscina central, apesar de render lindas fotos. A Maison Bleue oferece também aulas de culinária marroquina e pequenos-almoços abundantes e deliciosos, que incluem café expresso (descobrimos que têm uma máquina Nespresso).
Outra opção poderá ser o Palais Faraj, com preços que não são para todas as carteiras. Nós jantámos lá e constatámos a excelência do serviço. Também possui um bar com uma bela vista.
Comer em Fez
As experiências gastronómicas na cidade imperial de Fez devem incluir comida das ruas da medina. Gastando pouco é possível provar kebabs, pão a sair do forno, milho assado, espeto de carne defumada em fogo de carvão, sandes gigantes, peixe frito e delicados doces marroquinos
No Café Clock, perto da madraça Bou Inania, pode provar o famoso hambúrguer de carne de camelo (95 DH), acompanhado de salada e batatas fritas. O trendy café – que já foi visitado por membros da realeza britânica e possui filiais noutras cidades marroquinas – estende-se por três andares. Nós sentámo-nos no terraço, aproveitando o crepúsculo com um chá de menta (10 DH).
Também tivemos uma experiência gastronómica feliz no Riad Fès. Depois de uma substancial sopa Harira, comi um Hout Mkhadar, peixe com legumes gratinados e especiarias, e rematei com uma tarte de laranja ma-ra-vi-lho-sa. O menu Délice inclui entrada, prato e sobremesa por 420 DH.
Nota: Esta viagem foi realizada a convite do Turismo de Marrocos. Porém, as opiniões expressas no post são independentes e resultantes da minha visão pessoal
32 Comentários
Que maravilha! Que bom foi conhecer esta cidade na tua companhia. Foi mesmo um local que me surpreendeu a cada esquina. Adorei este teu relato e todas as dicas!
Oi Ruthia, que delícia de post! Adoro seu jeito de escrever! Um jeito leve que vai nos contando dos lugares de tal foma que nos sentimos um pouco lá. Não sei se um dia irei ao Marrocos, mas já fui um pouquinho por este post aqui.
Abraços carinhos de uma brasileira que é sua fã!
Dilma
Nem sempre conseguimos traduzir em palavras o que vivemos. Obrigada pelo feedback, é este tipo se interacção que me motiva a manter o blog
Sua narrativa envolvente, quase poética, me fez sentir na Cidade Imperial de Fez! Um dos poucos textos que me despertaram interesse em visitar o Marrocos. Parabéns! Bjs
Missão cumprida então 🙂 Grata pela visita e amável comentário
Que legal esse fato sobre a Al Quaraouiyine, como a instituição de ensino mais velha do mundo. Nem imaginaria que ficava ai, achei q poderia ser na Europa!
O mais irónico foi ter sido criada por uma mulher e depois passar a ser frequentada apenas por homens
Saudades desta cidade magnífica em Marrocos. A cidade de Fez é mesmo extraordinária e gostei muito de a visitar novamente na tua companhia. bjinhos
Foi um “team building” e tanto. Sugiro um por ano, em continentes diferentes
Marrocos é um país que sempre me gerou muita curiosidade. A cada POST que leio, me dá mais vontade de conhecer! Fez tá na minha lista faz tempo (e que delícia de lugar que vc se hospedou, amei!!)
Ah, o riad era lindo, cheio de detalhes delicados. Foi uma excelente escolha, e super perto da medina.
Apesar de estar aqui tão próximo, fica a um mundo de distância, do ponto de vista cultural
Sim! É dessas coisas que a gente pensa “como pode a cultura ser tão diferente sendo aqui do lado”. Uma delícia se surpreender assim ♥️
O Marrocos é uma país lindo para se conhecer. Eu fui para outras cidades, ainda não conheço Fez, na próxima vez já está no roteiro
Que post lindo Ruthia. Nós adoramos nossa viagem para Marrocos e ler sempre sobre o país é sempre bom. Uma pena que não fomos para Fez, mas já deu um gostinho.
Fez é muito genuína, sentimos ali o pulsar de Marrocos. Aliás, o roteiro foi muito interessante porque, à medida que nos aproximávamos da costa (mais perto da Europa), íamos vendo cada vez mais detalhes de mistura cultural e arquitectónica.
Fez vale muito a pena. A medina é qualquer coisa de único! Belas dicas.
Que linda a cidade! Uma mistura de cor e cheiros que encantam. Fiquei imaginando a aventura de caminhar por um lugar assim.
Fez me impressiona muito nas imagens! Um dos lugares que tenho vontade de conhecer de perto são as tanneries, mas não sabia do mal odor. De qualquer forma, rende fotos muito bonitas. Outro ponto que muito me impressiona é a arquitetura árabe. Quanto detalhe incrível! Gostei muito de saber sobre a sua viagem, espero um dia poder visitar também.
A arquitectura é assombrosa sim. Quanto aos curtumes, não podiam cheirar bem. As peles já não cheiram bem, mas a combinação de químicos usados para as lavar, amaciar e tingir e o tempo que tudo fica de molho, xiii.
Verdade! Imagino que não deve ser agradável mesmo. Mas acho muito interessante para fotografar, então, acho que deve valer a pena encarar o mal cheiro pelo menos por pouco tempo.
Nossa, como adorei ler seu post, sua maneira de escrever cativa muito! Acho que visitar uma cidade como essa é uma aula de história que talvez nem conhecemos aqui no Brasil né? Quanta cultura, uma vida toda tão diferente, intrigante e mega interessante. Estou com vontade de conhecer.
É uma aula de história e uma grande aula cultural, já que tudo é diferente do nosso quotidiano
Um passeio de sonho. Meu Deus eu não me atreveria a passar naquela rua entre muralhas.
E o pequeno explorador?
Uma Santa e Feliz Páscoa
Abraço
Desta vez o pequeno explorador ficou em casa. Se participasse na viagem teria que faltar às aulas. De vez em quando precisamos “voar a solo” 😉
Que a alegria da Páscoa invada os nossos corações irradiando LUZ para iluminar e fazer brilhar o mundo em que vivemos, enchendo-o de Saúde, Paz e Amor.
Lembremos os que não podem estar à nossa mesa, mas estão, SEMPRE, nos nossos corações. Feliz Páscoa!
Beijinhos
MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS
Marrocos é um dos países do top da minha wish list de destinos para conhecer e vendo um post desse a vontade só aumenta. Lindas fotos e muitas dicas maravilhosas.
Que demais! Adoro seus textos! Eu me transporto ao lugar nos detalhes e fotos!
Acho que o ideal já é sair daqui com um guia contratado, né?!
Eu vi lá muita gente sem guia. O único problema é que pode ter dificuldade em encontrar certos lugares dentro da medina, acho que o google maps não funciona muito bem naquele labirinto
Ruthia, que beleza, tudo bem detalhadamente mostrado, de modo a ajudar quem pra lá pretende ir ou pelo menos aqui mesmo saber de lá! Lindo! Cada vez melhor teu blog!
beijos e desejo que a Páscoa seja alegre e muito feliz! chica
Que bela viagem e reportagem amiga.
Gosto de ver sua dedicação com os detalhes na partilha. nada lhe passa ao largo. Suas dicas são fantásticas e conta a historia com leveza e clareza que nos coloca nas ruas de Fez. Imaginei o hambúrguer de Camelo, você provou?
Grato sempre Ruthia por nos levar por lugares que nem imaginávamos.
Uma Feliz Páscoa para vocês.
O pequeno descobridor foi nesta embaixada?
Beijo amiga e feliz semana para vocês.
Eu não como carne há mais de 2 anos, Toninho. Mas fiquei com curiosidade de pelo menos saber como é o sabor.
Boa noite de Oitava de Páscoa, querida amigi Ruthia!
Mais do que a inteligência, precisamos da afeição e doçura.
(Charles Chaplin)
Ainda é tempo de lhe desejar dias pascais felizes…
Uma viagem que talvez me agradasse pelos trajes que elas usam, entretanto o toque místico, a magia dos templos, até os camelos me deixariam em pleno contentamento.
Gosto de andar de comboio pelos lugares inusitados… paisagem maravilhosas.
Gostei demais de tudo que vi por aqui nas belas fotografias que nos partilhou.
Tenha dias felizes e abençoados!
Bjm carinhoso, fraterno e pascal