Atualizado em 13 Abril, 2021
A morte de um grande escritor deixa-me sempre frustrada. Não é tanto o sentimento de ter perdido um “velho” amigo, mas uma profunda sensação de desperdício, de nostalgia pelas obras por nascer que nunca verão a luz do dia.
Bem sei que o Gabriel García Márquez já não escrevia devido à saúde precária, mas enquanto fosse vivo tudo parecia possível, como nas suas estórias. A morte de Gabo fez-me procurar os seus títulos pelas estantes, abri-los ao acaso, reler alguns trechos, relembrar personagens, com um misto de homenagem, agradecimento e saudade.
Folheei O Outono do Patriarca, ri-me com a falta de garbo da mãe presidencial. Passeei pela Crónica de uma morte Anunciada, abanei a cabeça perante a fina ironia de todo o enredo que culmina na morte do mulherengo Santiago Nasar. Suspirei com a melancolia de Horas Más.
Inconscientemente, procurava Cem Anos de Solidão, para entrar por alguns momentos na mítica Macondo, mas não encontrei o livro. Estará ainda guardado num dos caixotes que não abri desde que regressei a Portugal, após a nossa aventura transatlântica.
Um pouco desolada com esse contratempo – Cem Anos de Solidão estará talvez entre as melhores 20 obras que li até hoje – comprei O Amor em tempos de Cólera e A incrível e triste história de cândida Eréndira e da sua avó desalmada. Comecei a ler o primeiro, e um estremecimento percorreu-me a alma.
Não foi o ritmo encantatório de Gabriel García Márquez que provocou este tremor, foi antes um reconhecimento. Eu já tinha lido esta história. Onde, quando? Tudo se varreu da minha memória, mas essa certeza foi-se confirmando a cada página lida sobre o triângulo Fermina Daza, Juvenal Urbino e Florentino Ariza. Continuo siderada!
A incrível e triste história
Mas foi o pequeno livro de contos que me surpreendeu realmente. As sete narrativas, brevíssimas, lêem-se num sopro.
Cada uma nos deixa um travo incómodo, apesar de algumas personagens serem já nossas conhecidas. É o caso da mulher que se converteu em aranha, o charlatão Blacamán e a própria Eréndira, apresentada muito brevemente em Cem Anos de Solidão, onde Aureliano procura uma prostituta adolescente “com tetazinhas de cadela”, que se desloca numa caravana, pelo deserto.
O bizarro desta estória, que empresta o nome ao livro, é o facto da pequena mulata, de apenas 14 anos, ser obrigada a prostituir-se pela sua avó. Isto contraria todo um imaginário de velhas matriarcas, afectuosas e protectoras. Tudo porque, no extremo da exaustão, a menina adormece com uma vela acesa, que causa um incêndio. “- Minha pobre filha… a vida não te vai chegar para me pagares este percalço”.
Metáfora da exploração de jovens países pelas nações desenvolvidas, dizem uns. Denúncia da prostituição de menores na América Latina, defenderão outros. Um conto incómodo, remato eu. Das restantes e desconcertantes estórias que compõem o livro, a que mais gostei foi Um Senhor muito velho com umas asas enormes. Porquê? Pela descrição deste senhor que, no final das contas, é um anjo.
Quem descreveria um mensageiro celestial desta forma tão crua? Só alguém que mistura o sobrenatural com o quotidiano, o místico com as ninharias, a poesia com a podridão humana. Gabo, pois claro. Obrigada por mais esta viagem extraordinária!
Querem outros livros para viajarem sem saírem do lugar? Recomendo Cem dias entre céu e mar (Amyr Kink) e Guernica (Dave Boling)
24 Comentários
É sem duvida uma grande perda, tbm acho que Cem anos de solidão estão entre os melhores que já li.
Foi uma perda enorme. Tens de me emprestar o Cem Anos de Solidão, quando eu tiver deixado a minha aventura com o Quixote.
Um beijo enorme!
Claro querida. Mas primeiro tenho que o descobrir… e isso pressupõe uma visita a sabes quem?! Não tenhas pressa. Beijoca
Obrigada, Ruthia, por tão lindo texto. Uma bela homenagem a um escritor ímpar.
Obrigada, Ruthia, por tão belo texto. Uma bela homenagem a um escritor ímpar.
Uma grande perda para as letras, graças aos céus, imortalizado em ótimos livros!!
Acho que iremos no dia 24 de agosto para Lisboa.
Bjs desejando um ótimo final de semana
tititi da dri
Amiga, que bom vê-la em mais redes sociais hihi, eu já estou lhe acompanhando pelo instagram tb 🙂
Um grande escritor, sem dúvidas!!!
Bom fim de semana!!!
Beijinhos, Té
Ruthia,
Este autor incontornável para que sonha ao deslizar o olhar sobre as palavras, este talento incomparável para quem tem a paixão das letras, deixou-nos riquezas nas suas obras e é sempre com prazer que voltamos aos seus escritos.
Acredito que não sejamos mais pobres pela sua ausência! Somos agora ricos dos tesouros que eles nos legou…
Beijinhos!
Grande falha minha, acho que só li um dele, e nem me lembro qual… vergonhoso!
Podias revelar o teu top 20, queria saber!
Beijinhos e espero que esteja tudo cheio de energia aí por casa 😉
Lindo texto e foi uma perda muito grande pra todos nos! Lindo fds e tomara encontres o livro!! bjs,chica
Se "O berço do mundo" recorda, eu embarco nessa recordação. "Gabo" é imortal. Abraço, Ruthia!
Querida Ruthia
Senti a partida de Gabo quase como uma perda pessoal. Eu adorava tudo o que ele escrevia, li toda a sua obra e tenho a maioria dos livros – os que não tenho eu tem a minha filhota… livros, ora compro eu, ora compra ela, e depois trocamos 🙂
O primeiro livro que li foi precisamente "Amor nos tempos de cólera", e a partir daí foi paixão sem retorno:)
O último que li, (que está na minha "biblioteca" ) e que foi o último que escreveu, é o "Memória das Minhas Putas Tristes".
Causa-me tristeza pensar que não haverá mais..
Adorei esta tua postagem, completíssima.
Respondendo às tuas perguntas… estive na Ilha de S.Vicente (Sancente… ), cidade de Mindelo.
Sim, os os caboverdianos têm notas musicais misturadas no sangue! É a música e a dança que lhes está no sangue… Sódade, sódade… desses tempos tão felizes!
Bom fim de semana, minha querida.
Beijinhos
PS – Espero que o filhote esteja completamente bem. Beijito para ele.
Que linda homenagem Ruthia! Gabo é sempre merecedor de belas palavras. Uma grande perda, mas é o nosso destino. Salve Gabriel García Márquez! Abraços,
Ruthia!
Sou fã ardorosa do Gabriel Garcia Marquez.
A forma como coloca em palavra sua estórias que de tão bem descritas, parecem reais, nos toca fundo na ala e traz o ensinamento e a reflexão em vários aspectos.
Triste tê-lo perdido..
Agradeço a visita feita ao blog, obrigada!
Bom final de semana!
cheirinhos
Rudy
Blog Alegria de Viver e Amar o que é Bom!
" Dificil não é lutar por aquilo que se quer, e sim desistir daquilo que se mais ama.
Eu desisti. Mas não pense que foi por não ter coragem de lutar, e sim por não ter mais condições de sofrer.”(Bob Marley)
Que bela homenagem ao grande Garcia, com otima inserção de trechos de sua obra.
Oxalá voce encontre o livro para reviver estas emoções que ele tão bem sabia criar.
Li e tenho Gabriel.
Um lindo domingo Ruthia.
Meu terno abraço.
Beijo de paz amiga.
OI RUTHIA!
UMA BONITA E COMPLETA HOMENAGEM DESTE ESCRITOR DE TANTO TALENTO.
UMA GRANDE PERDA.
ABRÇS
Ruthia,
tua selecionada pontuação sobre estas obras do grande Gabo, me reavivaram a memória.Faz tanto tempo que li Cem anos de Solidão que vale um revival; a pobre Erendida me impactou muito, mas o Amor nos Tempos do Cólera restituiu-me o encantamento.Viajar pelas asas dos universos Gabianos é irresistível.
Bela lembrança vc nos trouxe.
Um ótimo domingo aí.
Bjkas,
Calu
Que post maravilhoso, Ruthia!
Acho que não li nada de Gabriel G.M. a não ser alguns trechos. O modo como descreveu me encantou… Entrará pra minha lista de futuras leituras, com certeza. Cem Anos de Solidão eu já ouvi muito sobre ele. Será o próximo a comprar então.
Uma linda semana, querida!
Beijos
Ruthia, concordo que Cem anos de solidão ficará como um dos melhores romances de nossa época. Lembro que li há muito tempo, mas me surpreendi com a força da história dessa família. Tem livros que lemos, esquecemos, mas depois de um tempo relemos algum trecho e descobrimos já ter lido aquilo…rss…entendi bem seu sentimento! Que maravilhosa e merecida homenagem! bjs,
Já li várias homenagens feita a ele, desde seu falecimento. Confesso, porém, que sua postagem superou todas elas. Você fez um breve passeio por suas obras e evidenciou a grandiosidade do escritor, com maestria. Seu português é excelente e tenho prazer em ler o que escreve. Bjs.
Uma belíssima homenagem este homem que sem dúvida é fabuloso.
Parabéns.
Abraços
Ruthia querida, já tenho a data certa da viagem. Chegamos em Lisboa no dia 11 de setembro, perto do meio dia e ficamos até dia 13, quando embarcamos, às 8h30min para Veneza.
espero poder te ver por lá!!
Vamos meus pais, minha madrinha, (estes todos jovens com mais de 70 anos) minha amiga quase como irmã Sandra e eu. bjs e até lá!!!!
Agora fui eu que tive cá um estremecimento, pois o que vc diz no parágrafo inicial sobre a frustração diante da morte de um grande escritor é o que também sinto, pelas mesmas razões, embora nunca tenha me expressado a respeito.
Eu amei/amo Cem anos de solidão!
Noutro dia vc me perguntou sobre o meu nome ser ou não comum aqui no Brasil e eu não respondi… É comum, sim, no sentido de não causar surpresa quando ouvido (como causava em Portugal), mas não é comum no sentido de haver uma imensa quantidade de pessoas com o mesmo nome. Moro numa cidade de cerca de 40 mil pessoas e sei de apenas mais 3, além de mim, que se chamam Jussara.
Abraço,
Jussara – minasdemim
Querida Ruthia
Faço minhas as palavras com que acaba o seu texto:«Obrigada por mais esta viagem extraordinária!» e acrescento: à obra de Gabo.
Um texto rico,bem escrito e que denota a sua admiração grande por este saudoso autor.
Obrigada por nos levar a revisitar pedaços dos seus(dele) escritos.
Um beijinho
Beatriz