Atualizado em 17 Fevereiro, 2021

E se um dos expoentes da literatura angolana – Pepetela – nos guiasse na sua capital? Hoje juntamos duas paixões: livros e viagens

Apanhamos boleia de Pepetela**, e da sua fina ironia, para revisitar Luanda, já não uma “vilazinha perdida numa baía” (A Sul o Sombreiro, 2011), mas uma grande metrópole com mais de dois milhões de habitantes e trânsito caótico.

Fintamos os candongueiros, os táxis colectivos azuis e brancos, e as “centenas de jovens a venderem as mais disparatadas coisas no meio das ruas aos automobilistas” (Se o Passado não tivesse asas, 2016), até chegarmos à Praça de Kinaxixi, cenário de O Desejo de Kianda (1995).

Em tempos, houve aqui uma lagoa, casa de Kianda rainha das sereias e espírito das águas, que acabaria soterrada por causa da construção ininterrupta da capital. Mas ela venceu a luta, fazendo ruir os edifícios: “Kianda se sentia abafar, com todo aquele peso em cima, não conseguia nadar, e finalmente se revoltou. E cantou, até que os prédios caíssem todos, um a um, devagarinho “. O narrador descreve ironicamente a singularidade desse fenómeno “nacional”, que nenhum técnico ou cientista consegue explicar.

© www.verangola.net

Realidade: um grande edifício inacabado dos anos 70 seria ocupado durante a guerra civil, tornando-se num musseque de 17 andares, sem água, luz, saneamento básico ou varandas. O prédio da lagoa de Kinaxixi foi demolido há poucos anos e hoje constrói-se ali um grande centro comercial. Será que Kianda se vai revoltar novamente?

Rumamos agora à cidade alta, passando por um dos templos mais bonitos da cidade, a Igreja de Jesus (século XVII), herança dos jesuítas, rumo ao morro da fortaleza.

“Naquele tempo do seu nascimento, só havia um muro mal rebocado a imitar um fortim com dois baluartes no alto do morro de S. Paulo sobre o mar, a ilha à frente; uma capela lá dentro, dedicada a S. Sebastião, e várias cubatas. A esse fortim despretensioso chamavam fortaleza de S. Miguel” (A Sul o Sombreiro, 2011).

Hoje, o forte acolhe o Museu da História Militar recordando um passado de luta simbolizado pela bandeira nacional gigante. A bandeira-monumento com 18 por 12 metros foi inaugurada na mesma data que o museu, a 4 de Abril, dia da paz e da reconciliação nacional.

Dali, temos uma linda vista sobre a baía de Luanda e também sobre a marginal, como chamam à Avenida 4 de Fevereiro omnipresente na obra de Pepetela.

Por exemplo, em A gloriosa família (1997), o narrador fala do espanto de Baltazar Van Dum, o protagonista flamengo, quando vê a baía ao “chocar, contra o vermelho da terra, o azul divino do mar e a brancura da areia na ilha coberta de coqueiros. Baía de Todos os Sonhos, gritou ele, sabendo que mesmo à frente, do outro lado do Atlântico, havia a Baía de Todos os Santos“.

Ali vai crescendo uma nova e cosmopolita baixa, com o porto renovado, a nova Assembleia Nacional, arranha-céus espelhados e o Mausoléu do Presidente Agostinho Neto.

Dali à ilha do Cabo é um instantinho. Ilha, que é como quem diz, já que está ligada à cidade por um pequeno istmo no sopé da Fortaleza de São Miguel. Ali se concentram os principais restaurantes e bares da noite luandense, para além da longa praia onde os “meninos de rua” se refugiavam durante a guerra civil (tema tratado em Se o Passado não tivesse asas, 2016).

Mas existem opções para todos os bolsos. Na ficção, existem mesmo restaurantes que aceitam cães: “Entrámos num restaurante da Ilha. Ninguém que implicou com o bicho. Estava a contar o dono vinha pôr o cão na rua, mas nada. Depois compreendi: da maneira que os fregueses se coçavam, as pulgas eram da casa. Não adiantava, mais bicho menos bicho” (Os Cães e os Caluandas, 1985).

Seguimos Sofia e Diego para o sul, até ao lar do padre Adão. “Apanharam um candongueiro até à Samba e depois outro até ao Morro Bento (…) no caminho para a barra do Kwanza, para lá dos limites da cidade” (Se o Passado não tivesse asas, 2016).

Alguns musseques que ainda resistem ao avanço dos bulldozers e do alcatrão. Pepetela descreveu na perfeição essas áreas degradadas, mas culturalmente ricas, em O tímido e as mulheres (2013) e também Os Cães e os Caluandas (1985), cujo protagonista – um pastor alemão – serve de pretexto para descrever a vida dos moradores de Luanda (os caluandas ou calús).

À saída da cidade, perto do museu da Escravatura, encontramos o novo Mercado do Artesanato, onde os africanos vendem a sua arte aos turistas com “complexos quer de superioridade balofa quer de inferioridade bacoca” (Se o Passado não tivesse asas, 2016) e alguns quilómetros depois, o Kwanza abre-se perante os nossos olhos:

“Olhava o rio, turbulento por ser época das chuvas e ele correr cheio de barro, paus de árvores, tetos de cubatas e animais mortos. A coloração das águas era por vezes acastanhada, outras leitosa, jamais o azul do céu (…) o Kwanza era mesmo um rio a sério (…) Um deus poderoso, tudo levando com ele, lento na sua majestade” (A Sul o Sombreiro, 2011).

Já deixámos Luanda para trás, mas não resistimos ao convite de Pepetela para nos alongarmos até à Muxima, onde os portugueses construíram uma fortaleza que “era na verdade um muro de taipa mal amanhado em cima do morro, protegido por dois baluartes em pedra virados para terra, para a Kissama ” (A Sul o Sombreiro, 2011).

Entrada do novo mercado do artesanato, à saída de Luanda

Parece que o sítio é frequentado por muitos mistérios e incrustado com muitos poderes: “as pessoas acreditam ser uma ofensa tão grande aos espíritos do local provocar inimizades ou batalhas, que já viram exércitos derretidos pela vontade dos deuses (…) Por isso aquele cabeço de Muxima era visitado desde sempre por muita gente à procura de paz de espírito, se não de tratamentos milagrosos” (Idem).

** Ex-activista do MPLA, ex-ministro da educação, um dos fundadores da União dos escritores Angolanos e ex-presidente da mesma, Pepetela é um dos maiores escritores angolanos da actualidade. Prémio Nacional de Literatura de Angola (pela obra Mayombe) e Prémio Camões em 1997, adoptou como nome literário a versão em umbundu do seu apelido (Pestana).

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