Atualizado em 9 Abril, 2021
A China é uma nação com muitas faces. Em Macau, os templos budistas contrastam com a arquitectura de estilo colonial, come-se dim-sum mas também bifanas e pastéis de bacalhau.
É tão estranho ler a toponímia das ruas em cantonês e português: Avenida da República, Largo de Santo Agostinho, Avenida Doutor Mário Soares, Calçada de S. Francisco Xavier, Rua de S. Domingos.
Um pormenor interessante em relação a estas placas; nem sempre os caracteres chineses correspondem ao nome português da artéria. A Rua do Padre António, por exemplo, significaria Rua dos Edifícios Altos, caso a tradução dos caracteres fosse literal. Possivelmente, o Padre António não é muito famoso entre os macaenses do século XXI.
Foi tão estranho como encantador voltar a ouvir a língua de Camões, depois de uma semana a falar apenas mandarim e inglês. É como um regresso a casa, a minha pátria é a minha língua, já cantava o Pessoa. O meu guia de hoje, 辰 张 (Chen Chang) também conhecido por Bradley. Natural de Pequim, ele conhece a cidade como a palma das suas mãos e fala um português maravilhoso, com um leve sotaque angolano e algumas expressões brasileiras misturadas no discurso (estudou em Portugal, trabalhou no Brasil e em Angola).
Graças ao Bradley, não tive que planear esta visita ao pormenor e o dia foi muito bem aproveitado. Começámos na zona da Barra, no templo de A-Má, e fomos subindo em direcção ao centro histórico, classificado pela UNESCO como Património Mundial da Humanidade em 2005.
“Entre templos chineses, igrejas católicas, edifícios antigos, como o do Leal Senado, e fortalezas como o Quartel dos Mouros, a Fortaleza do Monte ou a Fortaleza da Guia, em redor da qual estavam situados alguns dos principais pontos de defesa da cidade, a história de Macau é revisitada e deixa à vista a evolução da cidade e convivência das culturas”, escreveu o jornal Público por altura da nomeação.
De facto, a governação portuguesa, que durou mais de quatro séculos, deixou marcas indeléveis nesta cidade rodeada pelo mar. Os restaurantes têm garfos nas mesas, a calçada portuguesa cobre muitos passeios, as igrejas multiplicam-se, com os seus vitrais e anjos em marfim. Nesta manhã de domingo, ainda ouvimos os cânticos da missa que se celebrava na igreja ao lado do singelo Teatro D. Pedro V, construído em 1860 para celebrar o reinado do monarca.
Um pouco abaixo, fica a belíssima Igreja de S. Lourenço, onde desde o século XVI as famílias esperavam pelos marinheiros (na altura, avistava-se o mar dali), sendo por isso conhecida como a Igreja dos Ventos da Navegação Calma e também como a Igreja do Vento Favorável.
Depois da chuvada, que nos obrigou a uma pausa na tranquila Biblioteca Sir Robert Ho Tung – uma preciosidade para os investigadores sobre a presença católica, sobretudo dos jesuítas, no Oriente – o calor regressou em força, à medida que descemos para a Avenida Almeida Ribeiro, onde ficava o edifício do governo antes da transferência de soberania, e eterna residência dos bustos de Luís de Camões e de João de Deus.
As ruas estavam apinhadas de turistas, sobretudo chineses, e foi a passo de caracol que seguimos para o altar da cidade: as ruínas de S. Paulo. A fachada é tudo o que resta deste reduto jesuíta mas, ainda assim, é uma testemunha histórica admirável, umas das sete maravilhas portuguesas no mundo.
A economia do jogo
Depois do almoço, atravessámos a ponte para a ilha de Taipa e um novo mundo abriu-se perante os meus olhos: o mundo da jogatina, que garante a economia de Macau. Os cerca de 50 casinos já bateram as receitas de Las Vegas, a ponto do governo chinês estar a limitar os vistos aos seus cidadãos, que ali perdem rios de dinheiro.
Evidentemente, a primeira paragem foi no casino Grand Lisboa, o primeiro a ser construído “na Las Vegas do Oriente, no Monte Carlo da China” (os chavões relacionados com o jogo multiplicam-se). Em frente ao edifício original, ergue-se outro Grand Lisboa muito mais imponente.
Construído sob os princípios do feng shui, o novo casino evoca uma espada sobre uma maçã (苹 果, píng guǒ), fruta que, pela fonética, tem um significado muito positivo para os chineses pois assemelha-se a 平平安安 (píng píng ān’ān), expressão usada para desejar segurança, paz, prosperidade, etc.
Outros grandes espaços de jogo e compras são o Venetian, Hard Rock, Sands Cotai, MGM, Wynn ou Galaxy. Rumamos ao primeiro desta lista num dos muitos bus shuttles gratuitos. O marketing começa no próprio autocarro, onde somos bombardeados com publicidade: David Beckham é o rosto milionário do Venetian.
Tal como o seu irmão americano, a decoração do casino remete para Veneza, com canais artificiais repletos de gôndolas a atravessarem o mega centro comercial. O tecto imita o céu num dia eterno o que, somado à ausência de todo e qualquer relógio, nos faz perder completamente a noção do tempo. O objectivo é gastar, gastar, gastar seja no hotel, nas lojas ou nas mesas de jogo.
Eu, que tenho que voltar a Zhuhai, não posso alhear-me dos ponteiros e (cedo demais) é hora de regressar. Despeço-me de Macau e do meu novo amigo, que foi de uma amabilidade tocante, com um até breve.
P.S. Quero agradecer muito à dupla de amigos que fizeram deste um dia memorável: D. Francisco Xavier III e D. Bradley Constantino. Espero retribuir a hospitalidade em breve!
14 Comentários
Sincretismo cultural estonteante. Belíssimo post (inclusive o vídeo, e também por causa dele).
Querida Ruthia
As suas crónicas de viagens encantam-me. Nunca fui a Macau,mas foi como se lá tivesse estado, tal é a forma descritiva que utiliza.
É sempre um enorme prazer «viajar» consigo. Fiquei com vontade de ir conferir tudo in loco.
Um beijinho
Beatriz
Olá amiga, que belo relato de Macau, que já havia lido um pouco.
Até choveu com sua chegada isto é benção sim. Encontrar um guia assim faz toda diferença mesmo numa viagem histórica.Curiosa a presença do galo, mas as ruas cheias não é nada facil mesmo, mas com paciência se atravessa.
Mais um belo relato de viagem com dicas interessantes e passagens perfeitas da historia.
Temos que agradecer a partilha e viajamos com voce.
Um lindo fim de semana para voce com um abraço terno amiga.
Beijo de paz. Deus te abençoa.
Ah, achei curiosa esta tradução do nome da rua.
Falar o português é menos arriscado,rsrs.
Abraços
Uau, que alívio deve ser chegar numa região onde todos falam a sua língua!!!
Os cassino parecem imensos. Mais uma prova de que os chineses sabem imitar tudo muito bem, rs. Mas pelo jeito tem também muita influência portuguesa!
Beijinhos e bons ventos sempre Ruthia
Bia <°(((<
http://www.biaviagemambiental.blogspot.com
Na verdade, Bia, apesar da tradição se manter com as placas toponímicas e um jornal em língua portuguesa, acho que menos de 2% da população macaense fala português. O nosso legado linguístico vai desaparecer rapidamente
Uma bela reportagem de Macau, de que já ouvi falar, pois tenho amigos que já por lá andaram.
E um dos meus amigos virtuais, vive em Macau há 30 anos. Lá casou e por lá ficou.
Um abraço
Mais uma boa reportagem.
Não será fácil, mas um dia gostava de ir a Macau.
Ruthia, tenha um bom resto de domingo e uma boa semana.
Abraço.
que belo passeio Ruthia, além de uma grande lição de história e cultura. Amei conhecer este lindo pedacinho do mundo através deteus olhos e palavras… mais uma bela reportagem a nos ensinar um pouco mais da história da humanidade. Obrigada amiga! bjs
Boa tarde, magnifica fotorreportagem do seu lindo passeio por diferentes paisagens e cultura.
AG
Um tempão sem vir aqui e mais um texto fabuloso e uma aula, uma apresentação perfeita de Macau As fotos estão lindas e um pouco mais de cultura através de suas palavras. Como não conheço nada, me lembrei da Praça da Liberdade, que também não conheço, que fica em São Paulo. O fascinante dos orientais é que são defensores de suas origens. Adoro!
Ruthia, aos poucos vou colocando a leitura em dia.
Uma linda semana pra vc, querida!
Amiga querida! Como pude ficar tanto tempo sem visitar esta maravilha!!! Como é bom conhecer sobre mais sobre outras culturas, né? Beijinhos
Olá, Ruthia!
Fico encantada com os relatos de sua viagem, você nos deixa embarcar junto, nos torna parceiros de seu momento de conhecimento e aprendizado, como lhe agradeço pela riqueza de detalhes, confesso que não me atreveria a enfrentar o desconhecido, com a desenvoltura que você faz. Mas, estou amando conhecer com detalhes, Macau, através de seus olhos…
Obrigada Ruthia, abraços carinhosos
Maria Teresa
Como num passe de mágica, venho de Cantão à Macau – a China portuguesa: adorei!…sensação semelhante (não virtual) tive quando estive em Goa, pela primeira vez…ou seja, na Índia portuguesa.
Já vi tanto,sobre e de Macau…mas não com esse olhar, exclusivo da Ruthia: amei! Beijos!