Atualizado em 6 Outubro, 2022
Estou nas Caldas da Rainha, adoptada por uma nobre madrinha que, descobrindo por acaso as propriedades destas águas, aqui mandou erigir o primeiro hospital termal da Europa.
Um céu de chumbo ameaça chuva e uma brisa sopra desagradável, vinda do mar. O semblante de bronze de D. Leonor permanece sereno, alheio ao dia invernoso. Fotografo-a, ela em nada se altera, esta rainha Perfeitíssima. A cidade de Caldas da Rainha foi precisamente fundada por esta benfeitora em 1484.
Entro no grande parque em frente, que homenageia outro rei: D. Carlos I. As árvores, despidas e imensas, furam o céu que permanece cinza e incerto. O lago artificial reflecte grandes pavilhões que, outrora, foram a Casa de Convalescença, de apoio ao hospital. A pátina do tempo empresta-lhes um ar romanticamente decadente, são conchas vazias de uma época dourada.
Várias esculturas surpreendem-nos num ou noutro recanto deste jardim igualmente romântico, como tantos outros do século XIX, quando o comboio chegou às Caldas e com ele trouxe a aristocracia, os políticos, as elites. A moda de ir às águas para tratamento estava no apogeu, era um acontecimento social. Ramalho Ortigão fala deste jardim, onde com certeza teve muitos debates literários, pisando o chão que hoje percorro.
Subitamente, uma figura esculpida atrai o meu olhar e o coração cai-me aos pés, perante a grandeza daquela dor. Descubro mais tarde que a escultura se chama precisamente “A Dor”. E que existe outra semelhante, no Panteão da Casa Real Brigantina, a velar junto dos túmulos de D. Carlos I e o filho. Dizem que esta mulher é D. Amélia, carpindo pelo marido e filho, vítimas de regicídio.
Mas nada disto sei ainda enquanto admiro, muda de pasmo, esta figura de pedra que transmite tantos sentimentos, de perda e desespero, sem mostrar sequer o rosto. São as suas mãos que falam!
O seu criador, o modernista José Franco, foi um dos mais activos autores de arte pública da sua época. Das suas mãos saíram as estátuas de João Gonçalves Zarco (Funchal), do Infante D. Henrique (Musée d’Orsay, Paris), dos reis D. João IV (Vila Viçosa), D. Dinis (Universidade de Coimbra) e da própria D. Leonor, pela qual passei há pouco.
Projectou também o Cristo-Rei de Lisboa, apesar de ter morrido antes da sua construção. Portanto, esta mulher foi um estranho desvio do seu percurso artístico. Ainda bem.
A herança de Bordalo Pinheiro
Ainda no Parque D. Carlos I fica o Museu José Malhoa, infelizmente fechado, já que é segunda-feira. Para além da maioria das obras do pintor naturalista, o museu possui uma colecção de pintura e de escultura dos últimos dois séculos, e uma secção dedicada à cerâmica.
As Caldas da Rainha são muito conhecidas pela sua tradição cerâmica, graças a Rafael Bordalo Pinheiro, autor do famoso “Zé Povinho” e do “falo das Caldas”. O artista é tão importante para a região que inspirou uma Rota Bordaliana. Ao longo do percurso (duas distâncias possíveis) existem várias obras inspiradas nas suas faianças, começando por uma rã gigante junto à estação de comboios.
Seguindo a rua com o seu nome – a vereda que terá levado D. Leonor ao “charco” das famosas águas curativas -, encontra-se a Fábrica Bordalo Pinheiro. Ali fica também a Casa-Museu São Rafael, onde se pode apreciar muitas das obras produzidas pela antiga fábrica e outras mais actuais. E a loja da fábrica, com novas linhas como as Sardinhas que invadiram as lojas de souvenirs de todo o país.
Vale a pena seguir depois até à Praça da República, com o pitoresco mercado de frutas e legumes. Dizem que é o único que se realiza todos os dias no país.
E espreitar a Igreja de N. Senhora do Pópulo, que começou por ser a igreja do hospital. A capela de traços pré-manuelinos e góticos possui uma torre sineira com relógios, gárgulas e esculturas do século XVI, representando o anjo Gabriel e a Virgem da Anunciação. O interior é igualmente bonito, com as paredes repletas de azulejos do século XVII.
DICAS ÚTEIS:
Como chegar: é possível chegar de comboio: quem vem do norte, terá que mudar na estação de Coimbra-B (consulte os horários da CP aqui). Outra alternativa será o autocarro, com a Rede de Expressos ou a Rodoviária do Oeste.
Para quem vem de carro, desde Lisboa, deve seguir pela auto-estrada nº 8 (A8) e sair em Caldas da Rainha. Do Porto, tomar a A25, depois A17 e A8.
Onde ficar: a cidade das Caldas possui opções de alojamento para todos os bolsos. O Sana Silver Coast Hotel vale bem as suas 4 estrelas e fica super bem localizado. Outra alternativa poderá ser o 19 Tile, uma mansão do século XIX, em frente ao mercado da fruta. O edifício foi renovado e decorado por 6 ceramistas da cidade e o alojamento organiza visitas a várias oficinas de cerâmica.
O que comer: a comida tradicional portuguesa e os mariscos (a cidade fica a 10 km do mar) são boas opções. O bife ao alho do restaurante A Capelinha do Monte é bastante famoso. No restaurante O Recanto, pareceu-me muito bem a açorda com petingas fritas e o arroz de tomate com jaquinzinhos.
Para petiscos, sugiro A Casa Antero e para refeições saudáveis, o Leef. Não se esqueça de provar as cavacas locais. Confesso que não sou particularmente fã, mas provem e façam o vosso próprio juízo de valor.
O que visitar: para além das atracções já mencionadas no centro da cidade, recordo que as Caldas da Rainha ficam a apenas 10 km de Óbidos. Para quem gosta de praia, a Nazaré e a Foz do Arelho também estão próximas. O mosteiro da Batalha a cerca de 40 minutos e as grutas de Mira de Aire a cerca de 1 hora.
Quem está em Lisboa pode reservar uma rota da cerâmica durante um dia inteiro, para ficar a conhecer a cidade, a fábrica e o museu. Outra boa alternativa é um tour de nove horas que inclui Fátima, Batalha, Nazaré e Óbidos.
Este post faz parte do 8on8, um projecto colectivo que une lindas viajantes em volta de um tema comum, no dia 8 de cada mês. Espreitem os restantes textos sob o tema “cidades pouco turísticas”, inspirem-se e partilhem (por ordem alfabética):
Destinos por onde andei: Santa Margherita Ligure, vale a pena conhecer!
Let’s Fly Away: O que fazer em Montalcino
Mapeando Mundo: Cinco motivos (e oito fotos) para incluir Potsdam no seu roteiro!
Travel Tips Brasil: O que fazer em Campo Grande – MS?
Turistando.in: 8 cidades desconhecidas do centro da Itália para você se apaixonar
34 Comentários
Eis um sitio que conheço razoavelmente bem. Uma terra de que gosto muito.
Abraço e bom fim-de-semana
Caldas da Rainha, a terra do Zé Povinho. Só com esse título fiquei morrendo de curiosidade! Que lugar de história fascinante. Ainda se utilizam as águas medicinais que levaram a rainha até lá? A estátua “A Dor” daquela mãe em prantos também me impressionou muito. Se por foto foi assim, imagino ao vivo! É de uma sensibilidade ímpar. ! obra de Zé Povinho é muito pitoresca, sem dúvida um atrativo a mais para a cidade. Adorei o post!
Olha, as termas ficaram tanto tempo encerradas e os edifícios em restauro, que perderam clientes para outras estâncias termais. Mas, pelo que percebi, estão a retomar a actividade (embora só nos dias úteis, o que me parece muito estranho)
Por acaso tinha colocado a cidade na minha lista, já que quero visitar Óbidos e não sabia bem o que esperar. Agora já aprendi bastante sobre a cidade
Faça a rota Bordaliana (ou parte) e depois conte-me o que achou!
Que boas informações levaram a rainha até tais águas medicinais. O século XIX foi marco de sanatórios importantes; saúde e bem-estar começaram a figurar nas atenções das sociedades européias.
Muito impressionante a escultura da “dor”, extremamente expressiva. Impactante!
Gostei muito do acervo das louças bordalianas.
Tenha uma linda semana, Ruthia.
Calu
As louças da Fábrica Bordalo Pinheiro são bem famosas (e não muito baratas) actualmente. Confesso que aprecio o estilo, mas não compraria para a minha casa. Mas acho genial a ideia da Rota Bordaliana
Não conhecia Caldas da Rainha, mas a história me encantou. Estive em Óbidos há anos atrás e adorei a cidade. Em Caldas gostaria de visitar o mercado, que sempre acho interessante para conhecer mais da cultura local e a Igreja de N. Senhora do Pópulo. Obrigada pelas dicas Ruthia, quem sabe não consigo encaixar no meu roteiro em Portugal em novembro?
Acho que a rainha D. Leonor rumava a Óbidos quando parou nas Caldas, acredita? São destinos bem próximos e fáceis de conjugar numa visita.
Que relato emocionante, Ruthia! Adorei as informações sobre Caldas da Rainha, e de fato a estátua trasmite uma dor palpável.
Passei por Caldas da Rainha quando fiz o trajeto de Óbidos a Nazaré, mas não paramos na cidade. Em uma próxima visita vou querer conhecer.
Adorei conhecer a pequena Caldas da Rainha e sua história e ainda saber que está em uma rota tão frequentada por nós brasileiros. Fiquei impressionada com a obra “A Dor”, realmente transmite a dor de uma mãe lamentando a perda de um filho. Devo também te agradecer por me apresentar uma nova palavra “regicídio”. Acho que a monarquia ficou muito distante da nossa realidade.
O artista retratou muito bem o desespero da rainha. Nem consigo imaginar a dor de perder um filho.
É verdade, o roteiro Óbidos, Fátima, Nazaré é bem frequentado pelos viajantes brasileiros, mas raramente param nas Caldas da Rainha
Gosto muito desse mercado de frutas e legumes. O hospital termal é muito fotogénico e a herança de Bordalo Pinheiro um bem a preservar. Só tenho pena de ainda não ter visitado o Museu José Malhoa. Para a próxima… belo artigo.
Que destino interessante este em Portugal, realmente uma ótima surpresa para mim, que nunca tinha ouvido falar dele. Tão rico de história, arte e cultura, com certeza um destino imperdível em uma visita à Portugal. Adorei, obrigada por compartilhar. Beijo.
realmente o artista conseguiu transmitir a dor e angustia na escultura de D Amelia. muito interessante esse passeio em caldas da rainha
Sempre um novo aprendizado sobre essa terra que tanto amo! E como quero retornar a Óbidos, Caldas da Rainha virá em dobradinha! ?
Me teletransportei lendo seu texto. O passeio por Caldas da Rainha deve ter sido incrível mesmo. E suas dicas são bem úteis, de fato. Parabéns pelo post!
Que texto bonito, Ruthia. Eu, que nunca tinha equacionado ir às Caldas da Rainha, até fiquei cheia de vontade de conhecer o “berço” do Zé Povinho. 😀
Oh Carla, então não conheces a terra dos falos das Caldas? São uma instituição 😉
Caldas da Rainha: o primeiro hospital termal da Europa! Fiquei super curiosa por conhecer!
Caldas da Rainha e o Zé Povinho, estao ligados de forma umbilical! Teve também o primeiro hospital termal da Europa.Adoro as Caldas, tenho lá muitos amigos
Uma cidade interessante que mal conheço, só de passagem e algumas imagens.
Continuação de bons passeios.
Bj
?
Olhar D’Ouro – bLoG
Aaaaaaa Zé povinho! Como não ficar curiosa com esse título? Hahahaha amei conhecer mais sobre Caldas da Rainha. Achei bem moderna a fonte das rãs. Vou anotar na minha lista de cidades para visitar em Portugal.
A fonte das rãs é inspirada na obra do ceramista Bordalo Pinheiro, porque tem uma linha muito animalista e vegetalista.
Olá, Ruthia
Vivendo a menos de 100 quilómetros das Caldas… logicamente já lá fui várias vezes (para além de ser natural da Figueira da Foz…)
Mas… ddepois de te ler, penso: eu nunca fui às Caldas! ?
Estas “visitas guiadas” mostram-nos coisas que, doutro modo, nos passam despercebidas.
Por exemplo, essa magnífica estátua da Dor, eu não conhecia.
E como é bonita! E expressiva! As mãos parece que vertem lágrimas! Tenho que lá ir “mais uma vez”, mas agora só para fotografar essa estátua…
Impecável postagem!
Desejo uma semana feli, querida Ruthia.
Beijinhos
MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS
Depois conta-me como foi a visita às Caldas com “outros” olhos. Beijinhos
Quanta poesia tem teus textos, querida Ruthia… como não intitular “A Dor” para aquela escultura?
Linda!
Bordalo Pinheiro é um nome novo para mim… Assim como o prato “açorda com petingas fritas e o arroz de tomate com jaquinzinhos”. Eu adorei a culinària portuguesa. Foi o paìs que melhor aproveitamos a gastronomia e jà falei pro marido: “esse prato jà està na minha lista”.
E ele: “Na nossa!”
😉
Juliana, petingas e jaquinzinhos são peixes, normalmente pequenos e fritos. Quando vc regressar a Portugal eu te dou uma “educação geral” sobre a comida portuguesa. Vamos ficar as duas a rebolar
Que cidadezinha mais encantadora. E se tem história, já tenho vontade de ir. Acho que quando voltar a Portugal, duas semanas não serão suficientes . Adorei também as fotos
Eu moro nas Caldas da Rainha desde os meus 4 anos, e a cada dia mais me apaixono pela “minha” cidade.
Para além do parque D. Carlos I, temos a Mata, espaço verde e inspirador. Na cidade para além da fantástica Rota Bordaliana, projetada por uma estudante, existem também a Rota Ferreira da Silva e Rota do Azulejo. O museu do hospital, situado no edifício onde residiu a nossa extraordinária Rainha tem que ser visitado. No Avenal, um pouco retirado do centro, estão o museu da cerâmica, antiga casa do Visconde de Sacavém, e um centro de artes com 4 museus de artistas caldenses ou ligados a Caldas da Rainha. Por tudo isto e mais alguma coisa, deverão dedicar pelo menos um dia inteiro para visitar esta bela e rica cidade cheia de história.
E a igreja de Nossa Senhora do Pópulo, a ermida de S. Sebastião, e os nossos doces, cavacas, beijinhos, trouxas…
Excelente Blog . Bem haja , pela sua disponibilidade em reviver uma figura popular que tanto tem feito rir desde os nossos antepassados
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