Atualizado em 16 Abril, 2021
Às portas da Serra da Estrela, o Woolfest é um festival arrojado, num interior cada vez mais despovoado e esquecido da arte. Para visitar na Covilhã
Uma chuva miúda batida a vento não me impede de palmilhar o centro da Covilhã, ali para os lados das muralhas ou o que delas resta. Termino a subida junto ao relógio de sol, estacando no miradouro ao lado.
Uma mulher gigante domina a parede, de olhos cegos. Um brinco, em forma de candeeiro público, pende-lhe de uma orelha. Um terceiro braço irrompe-lhe das costas, segurando um novelo com o qual tece a sua própria roupa.
Ainda não sabia, mas rapidamente descobri, que esta é uma das várias paredes “tocadas” pelo Woolfest, o Festival de Arte Urbana da Covilhã. Nascido em 2011, utiliza paredes, normalmente sujas e degradadas, como suporte para intervenções artísticas.
Voltando às Portas do Sol, pois continuo ali especada abismada com o mural, refira-se que a autora se inspirou num poema da geração beat para criar esta Wild Orphan (2014). A obra de Tamara Alves alerta para o desaparecimento da renda de bilros e outras artes artesanais.
Sou surpreendida com outras criações do género durante as minhas deambulações. Uma menina a cerzir a bandeira de Portugal, uma fachada repleta de andorinhões, como se a Primavera tivesse chegado no tempo certo. Ou um pastor a carregar uma ovelha, junto à Igreja de Santa Maria Maior.
Várias destas criações constam do arquivo Google Art Project, que reúne online alguns dos melhores trabalhos artísticos do planeta. Owl Eyes é uma delas, considerada uma das 25 melhores do mundo no ano de 2014. Bordalo II criou o mocho a partir de sucata, na parede de uma casa habitada por estudantes universitários, para apelar ao renascer da sabedoria e da cultura no centro histórico.
Não muito longe, o artista tem outra peça que segue o mesmo princípio: transformar lixo em arte. Trata-se de um lobo e fica junto da estação de comboios do Fundão.
Da Covilhã para o mundo
Há muito que as fronteiras do Woolfest transbordaram para longe da Covilhã com projectos em Coimbra, Abrantes, Figueira da Foz, Cascais, Paris (França) e Djerba (Tunísia). O balanço da organização apontava, em 2015, para um total de 151 acções, envolvendo 43 artistas portugueses e 17 estrangeiros.
Um dos projectos mais surpreendentes foi o Lata65, um conjunto de workshops de grafíti para idosos. Graças ao seu sucesso, atravessou o Atlântico até S. Paulo e mereceu um destaque do jornal inglês, The Guardian.
Regresso às ruas da Covilhã para apresentar mais uma obra, que me intrigou em particular. O espanhol Kram é o autor desta parede de 10×10 metros, perto do jornal da cidade que apresenta, em tons de rosa, uma espécie de monstro enroscado.
Após alguma pesquisa, descobri que ele se inspirou numa lenda local acerca de um monstro com olhos no focinho, também chamado de “fera de Teixeira”. Diz-se de a tal fera, de enorme corpulência e astúcia, visitava semanalmente a pequena aldeia, comendo o primeiro desprevenido que encontrasse.
“Quando alguém se aproximava com a intenção de socorrer o acidentado, tinha como paga da sua boa vontade a perda da vida. A cada semana desaparecia um homem, sem se saber como. Os habitantes da aldeia estavam num horroroso pânico por causa da fera. Quando a noite chegava, todas as portas e janelas das habitações se fechavam. Certa noite em que a fera não encontrava ninguém nas ruas, entrou numa casa, vendo luz no seu interior. Conta-se que, ficando afocinhada na lareira, deixou de existir a fera, ficando apenas a lenda”.
Não faço ideia onde seja a tal aldeia, mas acho maravilhoso que o artista tenha reinventado a lenda no seu mural. Deixo-vos com o vídeo do making of. Fazendo votos que estas paredes se transformem, em breve, numa rota devidamente sinalizada e divulgada.
Site do Woolfest: aqui.
18 Comentários
Não sou exatamente uma apaixonada por intervenções urbanas, mas estas estão sensacionais.
Quanto ao monstro com olhos no focinho, é comparável a uma lenda corrente no Brasil, a da mula sem cabeça, que lançava fogo pelas ventas…
Somos duas Marta, associo "arte urbana" a grafítis sem sentido que sujam só porque sim. Mas aí está a prova de que existe arte urbana que merece o nome que carrega.
Abraço
OI RUTHIA!
A ARTE ENCANTA SEJA ELA QUAL FOR E ESTA PELA GRANDIOSIDADE E BELEZA, MAIS AINDA.
AMEI TEU POST.
Querida Ruthia
Gostei imenso desta postagem, que me fez crescer a vontade de revisitar a Covilhã, onde tantas vezes fui quando era solteira (estive lá de férias poucos anos antes de o meu marido falecer).
Na verdade encontram-se "por aí" grafitis que nos dão volta ao estômago, :))) mas estes são verdadeiras obras de arte, e de grande beleza. O do mocho é espectacular (sou "maluquinha" por mochos, tenho uma colecção enorme…)
Estás de parabéns por mais uma postagem maravilhosa.
Votos de uma semana muito feliz.
Beijinhos
MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS
Não tinha ideia de que havia uma coisa assim na Covilhã! Só lá estive de passagem e já há muitos anos, mas achei bonito!
Beijinhos, bom Verão 🙂
Gostei de ver,bem interessante essa arte que enfeita e não agride! bjs, chica
eu também não sou muito adepta da chamada arte urbana, mas estas que postastes são muito interessantes…. ao ponto de eu querer que algum artista descubra os muros e paredões daqui da cidade! bjs desejando ótima semana
Que ideia mais interessante. E que pinturas lindas. Há dias também vi uma parede na Guarda com uma pintura muito bonita. E em Almada, ali na zona do Ginjal também há paredes transformadas em obras de arte.
Um abraço
Adorei o post. É a primeira vez que vejo pela blogosfera algo relacionado com a minha cidade e é logo sobre algo que adoro. Faço e refaço roteiros por estas maravilhas e não me canso. Dão todo um novo rosto à cidade, e é tão bom poder contemplar estas obras de arte!
Beijinhos, Dalila ♡ |
É verdade, a Covilhã está muito subrepresentada em blogues de viagens, talvez por ser um mero ponto de passagem para a Serra. Mas pode melhorar nesse quesito.
Beijinho
Seus posts só fazem aumentar minha curiosidade sobre essa cidade, Ruthia!
Em São Paulo, você chegou a conhecer os grafitis da Vila Madalena? E os da 23 de maio? Com prefeito atual, a arte de rua passou a ser mais respeitada e os muros da cidade viraram museus! Vale a pena! (estou tentando convencê-la a vir ao Brasil de todo jeito, não? rsrs)
Um beijo!!!!
Na verdade, fiquei a conhecer muito mal S. Paulo. Praticamente só lá fui para apanhar o avião. Não precisa muito para me convencer, eu sou facilmente influenciada nesse quesito, hihi
Beijinho, querida
Confesso que fiquei a saber muito mais sobre as movimentações da arte urbana depois de ler o post. Só me resta agradecer-lhe, Ruthia, até porque o conceito me agrada deveras.
(O Pedrinho também testou as pernas pela Covilhã?)
Beijinho 🙂
O Pedrinho não testou a pernas por estas encostas, AC. Foi em tempo de aulas, ficou com a avó!
Beijinho
Olá Ruthia tenho visto algumas coisas pela internet e confesso uma certa queda por elas. Aqui com historias interessantes e ainda esta arte de ocupar paredes mal tratadas e ou mal cuidadas.
VAleu a partilha amiga.
Uma semana maravilhosa para voces.
Meu abraço ao pequeno explorador.
Bjs de paz amiga.
Boa noite, Ruthia, gratidão pela arte e cultura que partilhas!
Estive em Covilhã, para a formatura da filha de minha prima, mas foi tão corrido, que nada conheci.
Apesar que, em 98, nada disso existia na cidade, me encantei com os movimentos urbanos, planejados e executados por artistas renomados que criam artes a partir das histórias e lendas da cidade!
Excelente semana, abraços carinhosos
Maria Teresa
Nos anos 90 nada disto existia ainda, de facto. Também me apaixonei pelo projecto e fez-me lembrar outro parecido, na Madeira.
Vim lá da sua retrospectiva (ainda nem comentei por lá) porque realmente não me lembrava de ter nem ao menos visualizado este seu post. Fato. Embora a arte de modo geral me seduza pela reconstrução, que empreende, do real, não sou muito fã desse tipo de manifestação, mas gosto de alguns posicionamentos críticos que assumem, como alertar "para o desaparecimento da renda de bilros e outras artes artesanais"…
Abraço!