Atualizado em 24 Setembro, 2024
A cerca de 40 km do enclave espanhol de Ceuta, rodeada de montanhas mas muito perto do mar, Tétouan (ou Tetuão) não é um destino turístico badalado. Mas a pequena cidade branca merece mais do que uma breve paragem
Não é muito comum chegar a um destino sem grandes referências. Viajo até um sítio porque o planeei, porque algo na sua história me suscita a curiosidade, porque vi uma imagem que me inspirou. Nada disso aconteceu com Tétouan, já que o nosso roteiro foi pensado pelo Turismo de Marrocos.
Uma semana de trabalho particularmente atarefada – a ponto de acordar exaurida no dia do voo – impediu uma pesquisa prévia decente sobre a cidade. Sabia que a sua é uma das medinas marroquinas mais autênticas e, por isso, classificada pela Unesco como Património da Humanidade nos anos noventa. E pouco mais.
Tudo somado, Tétouan foi uma agradável surpresa. Desejei mais do que uma manhã – em trânsito entre Chefchaouen e Tânger – para explorar os seus segredos.
Apeada na Praça Moulay el Mehdi, fui recebida por uma igreja de cores fortes. A Igreja de Nossa Senhora da Vitória, comummente chamada de Igreja de Bacturia, é um dos dois templos católicos que sobrevivem em Tétouan desde os tempos do protectorado espanhol.
A mistura histórica nota-se nas fachadas em redor da praça, de traça andaluz, e nas conversas de rua, onde o espanhol se soma ao berbere, ao árabe e ao francês. O diálogo repete-se no interior da igreja, entre símbolos católicos e detalhes mudéjares.
Os sinos, que gozam da rara autorização de soarem em território muçulmano, chamam diariamente meia dúzia de fiéis para a missa das 19h, em espanhol. Ao domingo, imigrantes subsaarianos engrossam o grupo na missa das 11h, dada em espanhol e francês. Mais do que um lugar de fé, a igreja dá apoio aos imigrantes e suporte ao Centro Cultural Lerchundi.
Medina, a cidade dentro da cidade
Na recente Praça Feddan tenho o primeiro encontro com a medina branca, do século XVII, que cria um lindo contraste com as montanhas em redor. Um troço de muralha, que se prolonga por cinco quilómetros, conduz-me depois a uma das suas portas. E pronto, parece que entrei noutra dimensão.
Os souks estão cheios de movimento, cores e cheiros. Neste labirinto de escadas, arcos, passagens, praças, recantos e pequenos buracos, há muitas ruas estreitas com o habitual vai e vem de gente.
Há bancas de comida, pessoas sentadas no chão, trabalhadores à frente das suas oficinas, homens que pintam couro, mulheres que vendem frutas, muçulmanos que se dirigem à mesquita para rezarem, gatos à procura de comida. Há um souk de frutas e legumes, onde se comem tâmaras gigantes recheadas de nozes (hmmm) e outro das ervas medicinais e especiarias, lá bem no coração da medina.
A medina é subdividida em bairros, de acordo com a etnia ou religião dos seus habitantes, cada um com a sua própria mesquita, escola e mercados. Estes souks têm áreas específicas para diferentes artesãos: carpinteiros, joalheiros, tecelões, peleiros… Sim porque os curtumes têm alguma tradição, ainda que sem a dimensão de Fez, o que se traduz em preços bem mais apelativos. As meninas do grupo divertiram-se imenso a regatear e conseguiram algumas pechinchas.
É também possível visitar a área dos tanques onde se lavam e tingem as peles, se a conseguirem encontrar no enredo de uma medina (mesmo que pequena). Detive-me longos minutos a observar dois trabalhadores a rasparem peles, preparando-as para os tratamentos químicos posteriores. É um trabalho árduo.
Do mellah à tolerância religiosa
Há dias partilhei uma foto, no instagram, de uma menina que saiu para comprar pão no bairro judeu de Tetuão, o mellah que existe em várias cidades marroquinas. Alguém me interpelou surpreendido, perguntando qualquer coisa como: “mas eles permitem outras religiões?”
O bairro judeu testemunha a permanência pacífica deste povo no norte de África, desde que fugiu da Península Ibérica, em finais do século XV. Apesar de muitos terem rumado a Israel, após a fundação do país, ainda existem judeus em Marrocos. Fiz um curto passeio pelo bairro e percebi que a comunidade se mistura com árabes sem qualquer problema.
Também existem católicos no país; poucos é certo, e concentrados no eixo Tânger-Tétouan-Rabat. Marrocos dá espaço para o debate desta questão, organizando, por exemplo, uma Conferência sobre Minorias Religiosas em Países Islâmicos em 2016.
Há alguns anos, o rei marroquino convidou o Papa Francisco para uma visita oficial de dois dias, focada sobretudo no diálogo ecuménico. Não sei como é a vida de uma minoria religiosa em Marrocos, a breve visita não permitiu tanto, mas tudo isto me parece um sinal de tolerância.
Dicas úteis
Tenha atenção aos guias informais que querem “oferecer-lhe” os seus serviços à força (fomos perseguidos durante um bocado, quando o grupo se separou no interior da medina). Para evitar problemas com os turistas, quando um grupo chega a Tétouan pode ser acompanhado por um polícia à paisana, sem se aperceber. Um dos amigos viajantes apercebeu-se que tínhamos um agente a acompanhar-nos e este acabou por se revelar um bom guia local 🙂
Outros pontos de interesse: Tétouan possui um Museu de Arte Moderna. A cidade parece ter alguma tradição nesta área, pois tem uma das duas únicas escolas de Belas Artes do país. Existe ainda um Museu Etnográfico e um Museu de Arqueologia, com artefactos fenícios, romanos, mauritanos e púnicos. Infelizmente a minha breve visita não permitiu visitar nenhum deles.
A cerca de 10 km da cidade fica a praia de Martil, com um longo areal de 7 km entre o Cabo Negro (onde existe uma antiga fortaleza portuguesa) e o Cabo Nazari. Dizem que é linda. Se conhecem, acrescentem a vossa experiência nos comentários abaixo.
Como chegar: a cidade é um centro de distribuição da rede de transportes públicos do norte de Marrocos, pelo que não é difícil chegar. A Ryanair assegura ligações a partir de vários aeroportos europeus, como Madrid ou Sevilha. Do aeroporto Sania Ramel pode apanhar grand táxi (partilhado). De outras cidades marroquinas, como Fez, Chefchaouen ou Marraquexe, é possível chegar de autocarro da CTM.
Onde comer: almocei principescamente no Blanco Riad, a dois passos da Praça Hassan II que é dominada pelo palácio real (só por isso é um ponto de referência geográfico). Ali comi a melhor pastilha (um tipo de pastel) vegetariana de toda a viagem, enquanto os meus companheiros de viagem se refastelavam com uma tajine de carne de vaca e ameixas.
Esta poderá também ser uma boa opção para alojamento, com uma localização magnífica, ainda que um pouco cara para os meus gastos habituais em viagem.
Nota: Esta viagem foi realizada a convite do Turismo de Marrocos.
30 Comentários
Olha, vendo apenas a primeira foto eu pensei que se tratava mesmo de mais um dos “pueblos blancos” da Andaluzia, muito bonito o lugar
Simplesmente maravilhoso o post e as belezas de fotos. Adorei tudo e hoje destaco uma que me tocou: a do velho senhor em sua máquina.. Lindo demais! beijos, ótimo dia! chica
Que lugar maia mágico e cheio de histórias! Marrocos está na minha lista de desejos faz muito tempo. Amei o relato!
Fiz uma rápida passagem pelo Marrocos voltando da Europa. Casablanca e Marrakech. O país é realmente incrível e muito peculiar.
Um dia destes vou a Casablanca. Há voos directos desde o Porto.
Um local mágico por onde nos levou hoje.
Belas fotos a ilustrarem o texto.
Abraço e bom feriado
Belíssimo post sobre Tetouan! Lindas fotos. Bom saber que existe tolerância religiosa em território muçulmano. Realmente a cidade lembra muito a Andaluzia. O Marrocos está na minha lista de desejos a tempos.
Viajar permite-nos combater certos estereótipos que, como seres humanos, temos tendência a criar. Marrocos foi uma boa surpresa, nesse sentido, o que não quer dizer que possamos extrapolar para a realidade nacional. Poderá haver lugares mais religiosos e menos abertos à diferença, não conheço o país inteiro
Bom dia de paz, querida amiga
Um lugar bem diferente que ouço sempre falar pelas peculiaridades.
O que mais me chamou a atenção foi o olhar meigo da criança à metade da porta. Que coisinha mais linda e olhos profundos… O que será quando crescer? Sofrido ou não? Espero que bem feliz.
Uma sobremesa apetitosa para mim que aprecio muito doces.
Gostei do relato com esmero e particularidades.
Obrigada pelo carinho que deixa em meus blgos.
Tenha dias felizes!
Bjm carinhoso e fraterno de paz e bem
Eu adoro observar as pessoas de outros países, mas em particular as crianças. A forma delas viverem diz muito sobre um destino. E também me entrego a esse jogo de imaginar futuros para elas 🙂
Abraço
Caramba!Gostei muito do artigo do seu site. Estarei acompanhando sempre.Grata!!!
Mais uma cidade do Marrocos que eu não conhecia. Tétouan me pareceu também muito bonita! Estou gostando muito dessa série de artigos sobre a sua viagem ao Marrocos. Estou descobrindo muitos lugares. As fotos estão muito bonitas!
Todos os países têm lugares interessantes que fogem do roteiro turístico tradicional. Acho que foi isso que o Turismo de Marrocos pretendeu mostrar nesse roteiro que preparar para um grupo de bloggers. Tétouan foi uma agradável surpresa
Com certeza. Acho que foi uma boa estratégia deles. Afinal, a gente fica sempre mais interessado nos lugares que a gente consegue mais informações. Estou descobrindo muita coisa legal com o relato de vocês. Muito legal esse roteiro!
Sabia de Chefchouen (que conheço, inclusive) mas não sabia da existência de uma cidade marroquina chamada Tétouan, toda branquinha assim. Logo fiquei impactada quando você citou as comidas: tajine e pastilhas. Eu amei as tajines comi de tudo o que é jeito, quando estava voltando para o Brasil nem podia sentir o cheiro do cominho. rs
Também é conhecida como a “filha de Granada” por causa da presença espanhola na região. É um destino simpático
Adoraria poder visitar a cidade e conhecer toda essa raridade de povos do Museu de Arqueologia.
Com satisfação, sempre repetida por tuas lindas e detalhadas postagens, alimentei minha curiosidade sobre Tétouan, que vim a saber da existência através do encantador romance ” O tempo entre costuras”, de Maria Dueñas. Se na leitura envolvi-me no clima mágico da narrativa cenográfica sobre a cidade, aqui a vejo ao “vivo” revelando-se um destino promissor.
Gostei imenso em saber da vivenciada tolerância religiosa reinante por lá. Que assim prossiga sempre.
Aproveito para lhe deixar meus Parabéns carinhosos pela data do dia da Mãe! seja sempre muito feliz, Ruthia.
Bjinhus no pequeno( grandinho) explorador.
Bjo e boa semana pra ti.
Calu
Apesar da história da cidade estar fortemente entrelaçada com a de Espanha, não se ensina grande coisa sobre o período do protectorado, no sistema de ensino espanhol. Felizmente, há a literatura. vou pesquisar essa obra
Que interessante conhecer essa cidade, assumo que não tinha lido nada sobre Tetouan, mesmo no planejamento de nossa viagem para Marrocos. E que coisa mais linda, precisamos conhecer mais das terras marroquinas.
Os amigos bloggers sempre a acrescentar destinos à nossa lista, né?
Tetouan surpreendeu-me tanto. Gostei mesmo desta cidade. Fiquei com vontade de voltar e de explorar ainda mais aquele cantinho lindo de Marrocos.
Oi Ruthia! Eu nunca tinha ouvido falar de Tétouan. Quando vejo posts sobre Marrocos são sempre Marrakesh e Casablanca. Adorei as fotos e a descrição do lugar. Foi uma excelente viagem.
Parabéns pelo post!
Abraços,
Carolina
Eu acho que tinha visto o nome, algures no passado, mas não sabia quase nada sobre a cidade também. Obrigada por acompanhar esta aventura em Marrocos
Que linda cidade de casinha brancas, Tétouan me lembra muito a Santorini.
Atualmente ando em pesquisas incessantes sobre cidades Marroquinas pois pretendo conhecer o pais em breve. Amei sua dica de Tétouan e de todos os lugares para se conhecer na cidade. Tão feliz em saber sobre a tolerância entre os povos e religiões… O mundo precisa mais disso, tolerância e amor. Obrigada por compartilhar, já inclui mais esta em meu roteiro.
Sem dúvida, mais tolerância tornaria este num mundo muito melhor para se viver e viajar
Por não ser “um destino turístico badalado”, a “pequena cidade branca merece mais do que uma breve paragem”. Não podia estar mais de acordo. Adorei o souk, a catedral e, sobretudo, o facto de não ter encontrado mais turistas 🙂 Que bom foi recordar, em tão elegantes palavras, a aventura ABVP.
É verdade, foi a cidade onde vimos menos turistas, mesmo marroquinos. Não lhes senti a falta 🙂
Demais esse post. Adorei as fotos, e fiquei bem interessado em visitar. Essas cidades monocromaticas pelo mundo devem ser lindas pessoalmente, mas adorei o contraste da igreja amarela com as construções bem próximas.
Belo post