Atualizado em 19 Julho, 2023

Peixe fresco, carne que se desfaz, verdelho regional, queijos em abundância, doces históricos com especiarias. Como sobreviveu a linha da cintura a uma semana a comer na ilha Terceira?

Spoiler alert. Não haja ilusões – a linha sofreu graves danos durante estadia na terceira ilha do arquipélago a ser descoberta por navegadores portugueses, no tempo dos Descobrimentos. Porque, como no resto dos Açores, ar puro, mar a perder de vista, pastagens verdinhas e chuva resultam em produtos e pratos de excelência.

As vacas são criadas nas pastagens, livres (lembra-se da campanha “vacas felizes”?), resultando numa carne suculenta, usada na tradicional alcatra, bifes que se “derretem” na boca e também enchidos, como a morcela que, cada vez mais, acompanha o ananás açoriano como entrada. Ressalve-se que a ilha Terceira não produz ananases, mas os vizinhos micaelenses são peritos nisso, e nós somos fãs de todo o arquipélago.

Esculpidas pelo Atlântico que rodeia e acolhe as ilhas açorianas, o seu peixe só pode ser abundante e de frescura surpreendente. Depois, há tantos doces para rematar as refeições, da histórica queijada Dona Amélia, com mel de cana, ao pudim Conde da Praia ou ao camafeu.

Resumindo, é muito fácil ser-se feliz nos Açores (também) à mesa. É muito fácil terminar a refeição cheio(a) como um peru em véspera de Ação de Graças. Acompanhe-me neste roteiro pelos sabores da gastronomia terceirense. Por sua conta e risco.

Sobremesa de maracujá

Pratos regionais famosos da ilha Terceira

Alcatra

A alcatra é o prato mais conhecido e, quiçá, apreciado na Terceira, já servido no banquete de 1901, aquando da última visita régia à ilha. A carne de vaca é cozinhada muitooooo lentamente a lenha, num alguidar tradicional, feito na Olaria de São Bento, que mantém portas abertas graças a esta peça produzida com barro de origem vulcânica. Diz-se que, quanto mais usado o alguidar, melhor o sabor da alcatra. 

O prato começou a ser preparado durante a Festa do Espírito Santo, com os melhores nacos de carne, como o lombo e a alcatra que lhe deu nome, pelas famílias abastadas. Porém, as cozinheiras, que repetiam a receita com as partes menos nobres (chambão, cachaço e acém, tudo com osso), rapidamente perceberam que era muito mais saboroso nessa versão.

A alcatra tornou-se encontro de sabores: carne açoriana, louro europeu, pimenta preta e cravinho da Índia, a pimenta da Jamaica. Apesar de existirem versões de alcatra de peixe ou polvo, a de carne é a tradicional e pode ser provada um pouco por toda a ilha.

O acompanhamento deste prato reconfortante não é batatas ou arroz, mas um improvável pão doce de massa sovada. Dizem os terceirenses que esta união de sabores é única e especial. Importa experimentar antes de sentenciar.

#Dica: um dos pães doces mais famosos da ilha vende-se na padaria Adélia Martins, na freguesia dos Biscoitos.

Espadarte grelhado do restaurante O Pescador.

Peixes e mariscos

Amantes de peixe são particularmente felizes nos Açores, com a sua abundante vida marinha, destacando-se no prato a garoupa, o espadarte, o boca-negra (peixe típico das águas açorianas de boca escura e carne branca), a barracuda e o atum.

Do atum dos Açores se diz que é rosado, de sabor e textura suaves, levemente salgado, e ainda capturado com linha e anzol. Que é tão bom que é enviado para o famoso mercado de peixe de Tóquio.

Não nos esqueçamos do polvo guisado à moda dos Açores, um dos pratos mais antigos do cardápio açoriano, com variações de ilha para ilha, mantendo os temperos – em particular o vinho-de-cheiro, a pimenta da terra ou malagueta – como denominador comum.

Os mariscos são igualmente incontestáveis, das lapas com tempero de alho, às cracas ou cavacos (espécie de lagosta tenra) que dificilmente se encontram noutros destinos. Também é comum encontrar filetes de abrótea nos menus dos restaurantes – nós provámos uns bem tenros na Tasca das Tias, em Angra do Heroísmo.

Amêijoas degustadas na Tasca das Tias.

#Dica: entre os pratos de peixe memoráveis que saboreámos na Terceira, destaca-se o espadarte grelhado com molho de maracujá e puré de batata doce do restaurante O Pescador, na Praia da Vitória. Isto não é publicidade, regressei duas vezes porque me serviram as melhores refeições da viagem e paguei a conta no final.

Doces típicos da ilha Terceira

A Terceira é, porventura, a ilha açoriana onde a doçaria conventual é mais variada e requintada, graças à presença dos conventos da Esperança e de São Gonçalo.

Uma tradição doceira que se foi perdendo nas malhas do tempo, até que a pastelaria O Forno reavivou as velhas receitas, tornando-se uma referência na ilha, para felicidade de habitantes e turistas, tal como a sua antecessora (pastelaria Lusa) tinha sido na primeira metade do século XX.

Queijadas Dona Amélia

Queijadas Dona Amélia, caretos e afins

Os centenários bolos, sob forma de queijada, resultam da evolução do Bolo das Índias, que utilizava muitas das especiarias que os marinheiros traziam. A homenagem à rainha D. Amélia surgiu em 1901, altura em que visitou a ilha e elogiou o doce. Vai daí, as gentes da Terceira deram o nome da rainha a este bolo que leva mel de cana, farinha de milho, canela e outras especiarias.

Encontra as queijadas em vários pontos da ilha Terceira. Para além deste, há muitos outros docinhos tentadores na pastelaria O Forno, atrás citada. A escolha é dificultada perante uma montra repleta de caretas, Condes da Praia, feiticeiros, africanos, ladrilhos espanhóis ou charutos, camafeus, cornucópias… Provámos muitos (demais, confesso) e os meus preferidos foram os feiticeiros e os africanos. Já o Pedro adorou as caretas recheadas de amêndoa.

#Dica: O Forno encerra ao domingo, pelo que experimentámos também a pastelaria histórica Athanasio, mas, confesso, não fiquei rendida.

Pudim de Conde da Praia

O Pudim Conde da Praia terá sido criado pelas freiras do Convento de São Gonçalo, no final do século XVIII, mantendo-se no segredo do claustro. Naquela época, era conhecido como Pudim de Batata da Terra, mas hoje chamam-lhe Pudim Conde da Praia, porque era muito apreciado por Teotónio Ornelas Bruges, o primeiro Conde da Praia da Vitória e herói do Liberalismo.

Provámos o pudim – não confundir com o bolo com o mesmo nome, que é uma adaptação desta receita – no restaurante Sabores do Chef, perto da Praia da Vitória, durante um tour com a Azorbus. Esta formiguinha gostou muito da bomba calórica, doce e decadente, feita de batata, muitas gemas, muito açúcar, canela e limão.

Pudim do Conde da Praia

Doce de vinagre

Sim, o doce leva vinagre, ingrediente que serve para talhar o leite, mas não sabe a vinagre. Um terceirense afirmou-me, categórico, que o doce de vinagre era sobrevalorizado, mas eu gostei da sobremesa cremosa, que lembra vagamente o arroz doce. Já o meu filho, não achou piada à textura.

Diria até que foi a única coisa que se aproveitou no almoço no Ti Chôa, freguesia da Serreta, um restaurante que me foi amplamente recomendado mas que ficou aquém das expectativas.

A mim, que não como carne, serviu-me uma omelete demasiado cozinhada. Ao meu filho, não apresentou o menu de degustação, porque todos os pratos são para “um mínimo de duas pessoas”, servindo uma costeleta que passou muito do ponto, parecia uma sola de sapato e foi para trás. Definitivamente, apesar do espaço castiço, o Ti Chôa foi o maior fiasco gastronómico da nossa viagem à Terceira.

Doce de vinagre.

Não deixe de experimentar

Queijos

Sabia que 50% do queijo de Portugal é produzido nos Açores? E que se produz queijo nas ilhas há cerca de 500 anos? Uma das entradas mais populares dos restaurantes açorianos é uma tábua de queijo com enchidos regionais, acompanhada de um bom copo de vinho. 

A estrela será o queijo de São Jorge, com um sabor picante e intenso, mas existem variedades de queijos, frescos e curados, nas restantes ilhas. Na ilha Terceira produz-se o artesanal Queijo Vaquinha, mas também provámos queijo da Graciosa com doce de melão, como entrada, num dos restaurantes terceirenses.

Bolo Lêvedo

O bolo lêvedo nasceu em São Miguel, mas come-se um pouco por todo o arquipélago e a Terceira não é exceção. Mistura perfeita de pão e bolo, é versátil e comido a quase todas as refeições. Ao pequeno almoço, simples, com manteiga ou doce, nas restantes refeições como suporte para um bife, por exemplo. Na Terceira, vende-se muito bolo lêvedo industrializado nos supermercados.

© sayazorescheese.eu

Gelados Quinta dos Açores

A marca Quinta dos Açores vende produtos lácteos e carnes, mantendo mesmo um restaurante em Angra do Heroísmo, que não visitámos. Mas a sua fama deve-se sobretudo aos gelados caseiros, que até já chegaram a Lisboa.

Produzidos com leite e natas açorianos, há sabores incomuns como gelado queijada D. Amélia, queijada da Graciosa, queijada Vila Franca, queijo de São Jorge ou doce de figo. No centro histórico de Angra existe um pequeno quiosque que vende os gelados da Quinta dos Açores.

Vinho Verdelho dos Biscoitos

Famosa pelo seu vinho, a freguesia dos Biscoitos retira o nome de um solo negro, resultante de lava e escórias vulcânicas. Logo após o início do povoamento dos Açores, no século XV, estes terrenos difíceis começaram, lentamente, a ser reconfigurados para o cultivo da vinha.

Nasciam as curraletas, com paredes finas de pedra vulcânica, onde se plantou vinha rasteira, para não se queimar com o vento salgado que chega do mar. Criou-se cerca de 165 hectares de vinhas da casta verdelho e, em 1993, a Confraria do Vinho Verdelho dos Biscoitos.

Para além de apreciar estas vinhas insólitas, pode conhecer o Museu do Vinho naquela freguesia, um pequeno espaço de entrada gratuita, mantido pela família Brum, que procura contar a história da vinha terceirense.

Dicas de restaurantes na Terceira, Açores

Durante a nossa estadia na ilha Terceira, conversei longamente com vários moradores, e obtive dicas valiosas de restaurantes. Daqueles onde os terceirenses vão almoçar ao domingo com a família, alguns deles bem longe dos radares turísticos. Infelizmente, o tempo não foi suficiente para experimentar todos, mas aqui ficam algumas dessas partilhas.

O Restaurante Beira Mar é um clássico para comer peixe fresco e também me foi recomendado pelos terceirenses, mas infelizmente não conseguimos reserva. Fica na Calheta, bem próximo de Angra do Heroísmo, é bastante turístico e pouco económico, mas a qualidade e frescura do peixe mantêm-no na lista dos terceirenses.

O restaurante Rocha e o restaurante Boca Negra, ambos na freguesia de Porto Judeu, são outras recomendações locais para comer bom peixe e, no primeiro caso, telhas de marisco. Testado e recomendado é O Pescador, na Praia da Vitória. Tudo o que lá nos serviram estava muito bom e o Pedro diz que comeu ali o melhor bife da sua vida; a ironia de ter sido num sítio especializado em peixe!

O Caneta, em Altares, na estrada entre Biscoitos e a Serreta, é especializado em carnes, dizem quase todos, até porque a família Dias dedica-se não apenas à restauração, mas também à criação de gado. Não testámos e uma terceirense contou-me que já teve uma refeição menos feliz por lá, mas se experimentarem, contem como foi. O cozinheiro também pode ter um mau dia.

No restaurante Sabores do Atlântico, perto do aeroporto, dizem os locais, come-se a melhor açorda de marisco. E para a tradicional alcatra regional, nada como o restaurante Ramo Grande, na freguesia das Lajes, assegurou-me um motorista de autocarro.

Vocês têm outras dicas para comer na ilha Terceira? Já lá foram felizes à mesa? Contem tudo nos comentários.