Atualizado em 14 Junho, 2023
O flamenco talvez seja a mais preciosa de todas as raridades culturais de Espanha. De expressão de uma minoria, passou a ser vista como quinta-essência da identidade nacional. De uma arte marcada pela dor e miséria, passou a ser fator de modernidade
O tablao permanece numa semi obscuridade, enquanto três homens chegam, vestidos de negro. Um deles acomoda uma guitarra entre os braços, enquanto os outros se sentam, solenes. Um dos cantores, de ar surpreendentemente jovem, inaugura o espetáculo, rasgando a noite com um lamento.
Três bailarinos chegam ao tablao, marcando o ritmo com os saltos dos sapatos. As duas mulheres, Palmira e Mónica, levantam a barra do vestido colorido, imprimindo uma velocidade crescente aos pés.
Estamos na primeira fila, bem próximos do palco, e não nos limitamos a ver. Conseguimos sentir a comoção da música, a energia dos movimentos dos bailarinos. Esta dança visceral é feita de emoção pura, paixão e suor: há a vivacidade das alegrias, a sensualidade das guajiras, a sedução das bulerías, a solidão das soleás.
Os bailarinos revezam-se. Por vezes estão os três em cima do palco, outras vezes expandem-se em solos sincopados que vão crescendo, ao ponto de sustermos a respiração.
Os vestidos também mudam, ao sabor da emoção de cada palo. Há vestidos de caudas tão longas que batem no rosto dos espectadores, nos rodopios mais frenéticos. E depois há os acessórios, que acrescentam sempre algo surpreendente: um leque, um xaile, as castanholas…
Conheço gente que diz que os movimentos do homem são tão hipnóticos, que atraem mais o olhar. Não podia discordar mais. O bailarino é mais vigoroso e barulhento, mas nada iguala a graça feminina em cima do tablao, o colorido das vestes, o desalinho do cabelo no final da música, quando o brilho do olhar concorre com as luzes.
Uma hora passou num sopro. Cantores, bailarinos e músico levantam-se para uma exuberância final, altura em que o público sai do seu transe e aplaude com generosidade.
Nota: Sendo proibida a captação de imagens, todas as fotos de flamenco que acompanham este artigo foram cedidas pelo museu.
Um espaço que explica o flamenco
O nosso primeiro contacto com esta linda forma de arte aconteceu no Museo del Baile Flamenco, no histórico bairro de Santa Cruz, a dois passos da catedral de Sevilha. Antes do show, ficamos a saber um pouco mais sobre esta música/dança que mistura influências ciganas, árabes e judaicas. Percebemos um percurso de reconhecimento, até à distinção como património imaterial da Humanidade, em 2010.
A exposição ensinou-nos que, na sua forma original, o flamenco contava somente com a voz, um grito primitivo acompanhado pelo ritmo batido numa tábua de madeira. Ensinou-nos ainda que existem vários palos (ritmos ou estilos), às vezes contrastantes, que foram beber ao folclore andaluz, à música caribenha e aos ritmos africanos.
Para além da exposição permanente e das mostras temporárias, sobretudo pintura e fotografia, o Museu oferece vários espetáculos diários, sempre com elencos diferentes, para além de aulas de flamenco.
O espaço é dirigido por Cristina Hoyos, um dos nomes maiores do flamenco. Ao longo da sua carreira, ela atuou na abertura dos Jogos Olímpicos de Barcelona, participou em vários filmes, levou o flamenco à Ópera de Paris e Estocolmo (a primeira companhia de flamenco a atuar naqueles prestigiados palcos) e foi distinguida com vários prémios – medalha de ouro da Andaluzia, por exemplo – culminando na nomeação de embaixadora mundial da dança pela Unesco.
Um museu dedicado ao flamenco em Sevilha faz todo o sentido, já que a Andaluzia é o berço desta forma de arte (conheçam Sevilha aqui). A região é conhecida como a “trindade dourada do flamenco”, uma pirâmide cujas pontas são Cádiz, Jerez de la Frontera e o bairro de Triana, em Sevilha.
El flamenco es la cultura más importante que tenemos en España y me atrevo a decir que en Europa. Es una música increíble, tiene una gran fuerza emotiva y un ritmo y una emoción que muy pocos folclores europeos poseen. (Paco De Lucía)
Depois da introdução oferecida pelo museu, sugerimos uma viagem às profundezas do flamenco em Triana, do outro lado do Guadalquivir. Neste bairro carismático, incontornável na geografia do flamenco, existem diversos bares onde pode assistir a um espectáculo ao vivo com os melhores intérpretes da região.
Dizem que o flamenco de Triana resiste aos estragos da modernidade, que, ali, cantores, bailarinos e músicos mantêm viva a arte. Vale a pena deambular pela Calle de la Pureza, a Calle Betis e o Callejón de la Inquisición, com os seus emblemáticos pátios andaluzes e juntar-se às fiestas que se multiplicam por ali.
Museo del Baile Flamenco aqui | Três espetáculos diários: 17h00, 19h00 e 20h45 | Preço: a partir 29€ (adulto), 22€ (estudantes, portadores de deficiência), 15€ (6-12 anos) com acesso ao museu e show (valores de 2023). Existe ainda a opção de comprar apenas o acesso ao museu.
26 Comentários
Bom dia, Ruthia
O meu blog não está a actualizar as suas publicações.
Há tanto tempo com o mesmo post vim ver o que se
passava, e encontro tantas e tão boas informações sobre
as suas viagens.
Voltarei para as ler com vagar.
Bj
Olinda
Esta transição para a nova plataforma não tem sido fácil. Agradeço a sua preocupação e carinho.
Abraço
O Flamenco é realmente apaixonante, para mim é muito mais do que uma dança… toda a história que carrega, a força, a musicalidade e teatralidade… amo de paixão, por qualquer cidade espanhola que vou tento assistir a um show e com certeza os melhores estão na Andaluzia!
Vocês assistiram recentemente em Granada, que tem uma tradição diferente. Um dia que visite a cidade, com certeza, vou optar por um espectáculo mais intimista numa cueva.
Beijinho
Eu adoro estas manifestações culturais espanholas e em particular da Andaluzia. São maravilhosas demais as danças de Flamenco. Sempre que posso não perco um show.
Que incrível saber mais sobre o Flamenco, confesso que não sabia mt coisa até ler seu post. Adorei! 😀
Parabéns pela qualidade dos detalhes sobre o Flamenco!
E Andaluzia ganhou um motivo a mais pra ser visitada!
Obrigado!
Eu amo ir num show de Flamenco, minha família é da Andaluzia é essa dança me lembra meus antepassados, fiquei com vontade de ir novamente em um. Eu já vi em Sevilha e em Barcelona
Ainda tem família na Andaluzia? Conhece bem a região? Imagino que a cultura local lhe fale muito ao coração
Flamenco tem uma paixão que parece se alastrar dos pés dos dançarinos até a nossa alma, fazendo o coração bater no mesmo ritmo da dança. Fiquei ainda com mais vontade de fazer a parte da Andaluzia.
Todos os anos há um grande festival de Flamenco aqui em Roma e quando posso vou prestigiar.
Mas gostaria mesmo de vê-lo em sua terra natal. Desse ser ainda mais encantador
Um festival inteiro, a sério? Que interessante. Organizado por algum grupo de flamenco local ?
Nunca tive a oportunidade de ver um show de Flamenco, mas acredito que deva ser um belo espetáculo. Muito bacana um museu do Flamenco, ótimo para conhecer mais sobre essa dança típica.
Dá uma boa contextualização, sem ser maçadora. Todo o espaço é bem interessante, assisti a parte de uma aula (as portas são de vidro) e achei o máximo
Quando fui a Espanha não consegui ir assistir um show de Flamenco, mas na próxima irei com certeza! Seu post está maravilhoso, eu li e me vi assistindo. Parabéns !
Se a consegui transportar para o tablao, o meu objectivo foi cumprido 🙂
Morro de vontade de assistir a um show de flamenco e o seu post fez minha vontade só aumentar. Certamente estará no meu roteiro pela Espanha
Muy bonito. Un saludo desde Almería
Quando eu fui a Sevilha em 2015 assisti a uma apresentação tão linda e original. Era fora do centrinho turístico sabe?! Foi inesquecível e super recomendo. Excelente post, parabéns.
Existem vários lugares interessantes para assistir ao flamenco, embora os grandes tablaos, que até servem jantares, sejam muito populares entre os turistas. Mas não há necessidade de pagar uma fortuna. Há muitos lugares genuínos para apreciar essa arte
Fantástico Ruthia, adorei o novo layout e tudo mais!!!
Já atualizei seu novo endereço lá no blog…
Ainda não tive o prazer de ver ao vivo e a cores uma dança flamenca, embora minha família seja espanhola. Mas certamente está entre as prioridades numa próxima viajem a este incrível país!
Beijinhos
Bia
Muito obrigada pela companhia ao longo dos anos, e agora também no novo endereço. Acredito que vai ser muito impactante quando finalmente assistir a um espectáculo de flamenco, tendo raízes espanholas. Depois tem que me contar como foi
Beijinho
Muito interessante a cultura flamenca! Ainda não conheço a Espanha, mas assim que visitar vou procurar pelo Flamenco. Obrigada pela dica!
Sempre gostei, desde garota, e continuo gostando MUITO de flamenco (aliás, gosto de tudo que é dança).
É uma das manifestações artísticas que mais mexe comigo…
Esta “explanação” sobre o flamenco é completíssima e muito bem ilustrada.
Mas HOJE é um dia especial…?
Dia de Aniversário do pequeno explorador…
11 anos, não é verdade? Para o Pedro, um grande abraço de Parabéns e um beijo, desejando que ele continue explorando o Mundo com a mesma curiosidade de sempre. Felicidades, muitas, extensivas aos papás. ?????
Feliz Terça-feira e uma boa semana.
Beijinhos
MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS
É verdade Mariazita. E festejamos num lugar muito especial: Veneza!
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