Atualizado em 27 Fevereiro, 2023

A aldeia de Monsanto continua igual a si própria: pequena, encantadora, fundida em pedra. E a HBO rendeu-se às suas paisagens

Incrustada num cabeço escarpado de granito, o Mons Sanctus, a encantadora Monsanto detém dois títulos singulares: aldeia mais portuguesa de Portugal (1938) e aldeia histórica (1995). Esta é uma das 12 Aldeias Históricas de Portugal, programa criado nos anos 1990 pelo governo português, para restaurar e valorizar uma série de aldeias beirãs mais antigas que a própria nação.

Como quase todas as outras aldeias e vilas que compõem a rede, por aqui passaram romanos, visigodos e árabes – os seus vestígios mais antigos remontam ao paleolítico! Mas foi no século XII, após a expulsão dos árabes, que ganhou uma espécie de castelo templário.

As ruas íngremes apontam caminho para o que resta dele, no topo, onde a HBO filmou a prequela da GoT e de onde se desfruta de uma paisagem ímpar. As pedras (con)fundem-se com as casas na encosta da montanha rochosa, algumas servem mesmo de paredes ou teto.

Quando estiverem em Monsanto, divirtam-se a procurar a casa entre penedos. Aliás, percorrer as ruas irregulares e as estreitas passagens, que de repente se abrem em belos e inesperados cenários, é a melhor forma de conhecer esta aldeia histórica.

a Beira Baixa conta com aldeias históricas e aldeias de xisto

Numa delas, de seu nome rua da Frágua, Fernando Namora manteve um consultório, bem perto dos chamados “bancos da paciência”, em tempos utilizados pelos visitantes aos presos. Para além do médico-escritor, também Zeca Afonso, o nosso músico de intervenção, aqui encontrou refúgio e procurou inspiração.

Se o escritor compôs na aldeia algumas das suas últimas obras (a vida em Monsanto terá inspirado Retalhos da Vida de um Médico, por exemplo), o músico inspirou-se no cancioneiro popular da Beira Baixa, gravando até uma versão da famosa “Senhora do Almortão”.

Aldeia mais portuguesa de Portugal

Antes de descrever os principais pontos de interesse desta castiça vila de pedra construída numa encosta de granito, importa explicar (fui questionada sobre este assunto no nosso Instagram) porque é conhecida como a “aldeia mais portuguesa de Portugal”.

Apesar do slogan apetecível, do ponto de vista do marketing turístico, a distinção do Estado Novo significava que esta aldeia resistia a  “a decomposições e influências estranhas” e mantinha um “estado de conservação no mais elevado grau de pureza”.

Traduzindo por miúdos, a escolhida seria um lugar habitado por gente trabalhadora, cristãos, nacionalistas e tradicionais (folclore e festas religiosas, ok, mas nada de modernices). Duas aldeias de cada região portuguesa participaram neste concurso lançado pelo Secretariado Nacional de Propaganda, que se pretendia ser bianual, mas que nunca mais se repetiu.

Assim, Monsanto ficou a aldeia mais portuguesa ad eternum e, para além de uma estrada em condições até Castelo Branco, ganhou um galo de prata como troféu. Ainda hoje ostenta uma réplica, no topo da Torre do Lucano, como podem vislumbrar entre o nevoeiro da foto de entrada.

House of the Dragon in Monsanto

Monsanto tem sido notícia frequente, não por (continuar a) ser o exemplo máximo de portugalidade, mas por ter sido escolhida como um dos cenários da prequela de A Guerra dos Tronos (Game Of Thrones), adaptada da obra de George R. R. Martin. House of the Dragon acompanha as lutas pelo poder da família Targaryen, 200 anos antes do início da história original.

Nesta nova série, Monsanto é Dragonstone, um lugar importante pois é onde habitualmente reside o próximo na linha de sucessão ao Trono de Ferro. Em GoT, a ilha era uma costa do Norte de Espanha, pois só se filmou a praia. Mas faltava o resto do cenário, que os criadores encontraram no cabeço de Monsanto.

A pacata vila beirã com poucas centenas de habitantes tornou-se um rebuliço no final de 2021, com o aparato das filmagens e o castelo fechado em exclusivo para a HBO. A poucos quilómetros, outra aldeia surpreendente, Penha Garcia, tornou-se o apoio logístico da mega produção, onde a Força Aérea manteve um heliporto para transportar o material técnico mais pesado.

Se é verdade que a série conta com inúmeros efeitos especiais, a montanha de Monsanto, tantas vezes descrita como “um mar de granito”, está agora entre os lugares associados à mítica saga e, se se repetir o fenómeno sentido noutros locais de filmagem (Islândia, Irlanda do Norte e Croácia), espera-se um fluxo de turistas para o qual a pequena aldeia não está preparada.

House of Dragon
© Imagens adaptadas de uma notícia do jornal Expresso. Em cima, imagens da série por comparação ao cenário real da aldeia

Castelo de Monsanto e a Festa da Divina Cruz

Por ordem de “grandeza”, no topo da lista de lugares imperdíveis – expressão que desgosto, mas vá, que a imaginação não nos abençoa todos os dias – estão as ruínas do Castelo, que sobraram de uma explosão numa noite de Natal.

O castelo está ligado à Festa da Divina Cruz, originalmente uma tradição profana ligada ao ciclo da Primavera, que foi cristianizada e associada a um lendário cerco do castelo. Uma versão da lenda diz que aconteceu em  fins do século II a.C., contra tropas romanas, outra versão fala de um ataque dos mouros no século XIII, ou durante as lutas com Castela, muito mais tarde.

Em qualquer das hipóteses, os sitiantes procuraram vencer pela fome os defensores do castelo, num cerco que se prolongou por sete longos anos. Intramuros, só restava uma vitela esquelética e um alqueire de trigo. Vai daí, alimentou-se a vitela com o último trigo, lançando-a para se despedaçar contra as rochas. Do ventre da vitela espalhou-se o trigo e o inimigo achou que os defensores, milagrosamente, tinham muito alimento, graças à providência divina. Cansados, levantaram o cerco e foram para casa.

O episódio terá acontecido a 3 de maio (dia da Santa Cruz), razão pela qual nesta data, anualmente, as mulheres de Monsanto partem rumo ao castelo ao som de adufes, agitando marafonas e potes caiados de branco. No alto das muralhas, lançam os potes brancos, floridos, símbolo da vitela e da salvação da vila.

O que visitar na aldeia histórica de Monsanto

No interior profundo de Portugal, a aldeia-monumento que parece parada no tempo, ou em vários tempos, é feita de pedras e de histórias antigas. Apesar de pequena, dificilmente se desvendam todos os segredos de Monsanto numa primeira visita. Mas pode sempre tentar, deambulando pelas ruas estreitas, conhecendo as furdas, procurando os melhores ângulos para fotografar, subindo ao castelo onde o vento nos envolve num intenso abraço.

Estacionado o carro junto ao Miradouro da Praça dos Canhões (brevemente com acesso pago), é altura de conhecer a linda aldeia história. Nas extremidades de Monsanto escondem-se diversas portas da vila, por exemplo, a Porta do Espírito Santo ou as Portas de Santo António, mas, para as conhecer, terá que caminhar um pouco.

Para além do castelo – com a sua Capela de Santa Maria do século XVII, capela de São Miguel do século XII, torre da Atalaia e torre de menagem – vale a pena espreitar a gruta artificial, uma estrutura inesperada criada entre dois grandes penedos, que começou por servir de furda, isto é, um abrigo para os porcos, muito típico da região da Beira Interior.

Não esqueçamos a Igreja Matriz de Monsanto – igreja de S. Salvador, do século XV/XVI e de estilo românico – a  Igreja da Misericórdia, o pelourinho e a Torre de Lucano, também conhecida por torre do relógio, com o seu galo brilhante. Monsanto conta ainda com várias casas senhoriais em pedra, como o Solar do Marquês da Graciosa, onde funciona o posto de turismo.

© Aldeias históricas de Portugal

As mágicas marafonas

O artesanato de Monsanto inclui latoaria, instrumentos musicais e as milenares marafonas, bonecas de pano que tanto protegem da trovoada como funcionam como anjos da guarda. Claro, não podemos esquecer os adufes, que marcam a identidade musical do concelho de Idanha e a sua distinção entre as cidades criativas da Unesco.

Voltando às marafonas, pode comprar estas bonecas de trapos sem rosto (olhos, nariz, boca ou ouvidos) à D. Maria Helena Pinheiro, uma das poucas artesãs que ainda as faz, 60 anos dedicados à arte, mais de 70 de vida.

A marafona dá sorte aos recém-casados, trazendo felicidade e fertilidade, mas também afasta trovoadas. Para a fertilidade coloca-se debaixo da cama, sem medos, pois não ouve, não vê e não fala, não conta nada a ninguém. Podem colocar-se junto ao gado, para proteção. Em Penha Garcia, colocam-se à janela em número igual ao de crianças em casa, fazendo de anjos da guarda.

marafonas de Monsanto

O misticismo de São Pedro de Vir-a-corça

Na base do monte santo fica S. Pedro de Vir-a-Corça, um antigo eremitério com uma energia incrível que conheci com o meu marido (na altura apenas namorado) há mais de 20 anos. Na altura, senti ali qualquer coisa de inexplicável que, ainda hoje, não consigo traduzir em palavras.

Voltei ali no último solstício do Verão  e descobri que o lugar está envolto em misticismo. Ouvi uma académica dizer que “pessoas sensíveis” sentem ali algo único, porque a pequena capela do século XIII foi colocada num ponto de confluência de energias. Nunca me vi como alguém especialmente aberto ao esotérico, portanto foi surpreendente saber tudo isto, no mínimo.

Para além da capela românica, neste largo rodeado de sobreiros há um campanário sobre um penedo (sem sino), que emoldura esse “monte parideiro de fragas”, e duas covas retangulares, que investigadores atribuem a cultos solares ligados a Mitra.

Como se não bastasse, há ainda uma antiga gruta que parece ter sido imaginada por Tolkien, que o povo relaciona com a lenda da corça. Certo dia, uma mulher, desesperada com as dores de parto, entregou o seu recém-nascido aos demónios. Amador, assim se chamava o eremita local, invocou São Pedro para o salvar. Só não se lembrou que não tinha, no meio da sua pobreza, como alimentar o bebé. A sua fé salvou, uma vez mais, a situação, atraindo uma corça que amamentou a criança.

Se um dia passarem por ali, digam-me o que sentiram neste lugar de silêncio e lendas.

© CIM Beira Baixa

Trilhos – Rota dos Barrocais

São Pedro de Vir-a-corça é um dos pontos de passagem da Rota dos Barrocais (PR5), que começa e termina no Posto de Turismo de Monsanto, de desnível acentuado, já que percorre a encosta íngreme e cheia de pedras. De dificuldade média, o percurso curto (4,5 km) passa pela casa de Fernando Namora, Castelo, Capela de Santa Maria e Capela de São João.

Depois sai pela porta da traição, seguindo para a capela de São Miguel, penedos juntos, pedra bolideira e São Pedro de Vir-a-Corça. Ali algures poderá conhecer a enigmática Laje das 13 Tigelas. Apesar de ser uma rota que qualquer um pode fazer, sem um grau de dificuldade muito elevado, convém fazê-lo de manhã cedo e evitar os meses de julho e agosto, por causa do calor.

Esta é apenas uma das nove pequenas rotas marcadas no concelho de Idanha-a-Nova, neste caso, com ligação a percursos maiores como seja a Grande Rota das aldeias históricas (GR22) e a Rota de Idanha (GR12E7).

Dicas úteis para visitar a aldeia de Monsanto

Como chegar a Monsanto

Monsanto fica a 275 quilómetros de Lisboa, 287 km do Porto e a 25 km de Idanha-a-Nova (sede de concelho), perto da fronteira com Espanha. Infelizmente, a única forma prática de chegar à aldeia histórica de Monsanto é em carro próprio ou alugado. Se precisar de alugar carro, recomendamos a Rentalcars.

A cidade grande mais próxima – Castelo Branco, a cerca de 50 km – é servida de comboio e rede de expressos (fica a dica), mas dali para as aldeias históricas de Monsanto ou Idanha-a-Velha não há grandes opções de transportes públicos.

De Lisboa, o trajeto mais comum é seguir pela A1 e A23, e depois as estradas nacionais N233 e N239 até Monsanto. Vindo do Porto, A1 e A25, seguindo depois para Monsanto via Penamacor. Em ambos os casos, são cerca de três horas de viagem.

Onde ficar em Monsanto, a aldeia mais portuguesa

Nós ficámos no Monsanto GeoHotel Escola (***), simpático, económico e despretensioso, mas não inesquecível (a precisar de alguma manutenção). Uma alternativa perto da aldeia, um pouco mais cara, mas bem mais charmosa, será a Quinta de São Pedro de vir-a-Corça.

Onde comer

As opções na aldeia não abundam, pelo que se recomenda a adega típica O Cruzeiro e o restaurante Petiscos & Granitos (se estiver bom tempo, o terraço é uma delícia). Não muito longe, outras opções são a Casa da Velha Fonte na Casa da Amoreira, na estrada para a aldeia histórica de Idanha-a-Velha, ou o Restaurante Papa Figos, em Monfortinho.

Se quiser babar um pouco, leia este artigo sobre a cozinha da Beira Baixa antes da sua visita e, não deixe de provar os doces típicos de Idanha: os borrachões (suspiro).