Atualizado em 17 Junho, 2024
Em Korogho, norte da Costa do Marfim, há animistas, sacrifícios de animais, artesanato e um povo orgulhoso das suas tradições. Fotamana! Bem-vindos ao país Sénoufo.
Korogho viveu no meu imaginário desde que cheguei à Costa do Marfim e me pus a pesquisar sobre os seus destinos turísticos, mas um senão adiou (bastante) a viagem à capital da região de Poro. A página das comunidades portuguesas desaconselha a visita a regiões do norte próximas das fronteiras com o Mali e Burkina Faso, dois países politicamente instáveis.
Contudo, no início de 2024, Korogho foi uma das cidades anfitriãs da Cup of African Nations (CAN), com jogos no recém-inaugurado estádio Amadou Gon Coulibaly de 20 mil lugares. As seleções da Tunísia, Namíbia, Mali e África do Sul jogaram na cidade, na primeira fase da competição, sem quaisquer incidentes.
Depois de conversar com outros viajantes, locais e expatriados, que viajaram até Korogho, fiz uma road trip memorável e Korogho tornou-se a minha região preferida da Costa do Marfim, batendo outros lugares interessantes como Man (no meio das montanhas) e Grand-Béreby (praia).
De Korhogo se diz que é a quarta maior cidade do país, com a particularidade de 95% dos 430 mil habitantes (estimativas de 2020) ser animista.
Essencialmente agricultores, os Sénoufo caracterizam-se por uma forte e fascinante coesão sócio religiosa: as suas comunidades são hierarquizadas em castas de iniciados. Por esta razão, subir ao “Grande Norte” é, para muitos, encontrar a verdadeira África, sobrenatural e mística, onde o sagrado e o corriqueiro conversam e se entrelaçam.
Por exemplo, a cada um dos cinco sobrenomes Sénoufo mais comuns corresponde um animal sagrado: a pantera é o animal dos Soro, o javali dos Tuo, o macaco preto dos Silué, o esquilo é o dos Sékongo e o antílope vermelho é o símbolo dos Yéo.
Korhogo ainda vive num espírito de aldeia. As comunidades vivem juntas em harmonia, com base no respeito pelos mais velhos, no trabalho comunitário e na obediência às regras. A região assume ainda uma personalidade criativa forte, sendo uma das regiões da Costa do Marfim mais interessantes para se comprar artesanato.
Não raras vezes, o Sénoufo é tanto agricultor como artesão, pelo que muitas das atrações locais estão relacionadas com artesanato – dos tecidos de Waraniéné, ao trabalho em ferro de Koni, das contas de barro de Kapélé aos maravilhosos tecidos pintados de Fakaha, aldeia que cresceu em redor de um respeitável embondeiro.
As riquezas dos Sénoufo
Da dupla vocação agricultor-artesão surgem várias riquezas, a começar pelo algodão, o “ouro branco” dos Sénoufo. Em termos agrícolas, destacam-se ainda as culturas da castanha de caju e da manga.
No quesito das tradições artesanais e artísticas, os Sénoufo são famosos pela escultura em madeira, como intermediárias entre o mundo dos vivos e o mundo dos espíritos. Os escultores profissionais (conhecidos como Kpembélés) que criam certas máscaras/estátuas pertencem a uma casta específica, a dos Koulés, e trabalham em bairros claramente demarcados. O bairro de Koko, próximo do centro da cidade, será porventura o mais conhecido.
Em novembro de 2014, durante um leilão organizado pela Sotheby’s em Nova Iorque, uma estátua feminina Sénoufo foi vendida por 11 milhões de euros: um absoluto recorde para uma obra de arte africana.
A autoria da peça de finais do século XIX é atribuída ao “Mestre de Sikasso”, do qual apenas se conhecem outras duas produções. A estátua é descrita como uma peça minimalista com pureza de traços e “uma das manifestações mais emblemáticas do génio africano”. E terá pertencido a alguns dos maiores colecionadores de arte africana do século XX.
Bairro de escultores Koko
Existem várias galerias-oficina neste bairro, povoadas de máscaras, estatuetas, bengalas, grandes calaus, portas, bancos e cópias, mais ou menos fiéis, de modelos tradicionais. Geralmente esculpidas em madeira teca ou da árvore a que chamam de fromagier, as peças são depois (quase todas) tingidas de preto.
Os artistas mostram orgulhoso no seu trabalho e gostam de explicar o simbolismo das máscaras e das esculturas. Por exemplo, o calau, ave que existe em várias partes da Ásia e África, é aqui símbolo de sabedoria, proteção, felicidade e fertilidade, enquanto a máscara de javali celebra a glória do caçador.
Existe a máscara gémea, que sai à rua para celebrar o nascimento de gémeos, a reconciliação de duas aldeias ou o casamento de jovens de aldeias diferentes. Acrescente-se máscaras cerimoniais como a Mammy Watta com cobras no topo (mensageiras pós-vida, no panteão Sénoufo), usada por jovens iniciados, ou a gigante Wassolo.
A manteiga de karité
Não muito longe do bairro dos escultores é possível visitar uma cooperativa onde se produz manteiga de karité, um dos essenciais de beleza da mulher africana, usado no cabelo e no corpo.
Fabricado por mulheres (vimos apenas um homem em todo o recinto, no moinho), o processo é praticamente todo artesanal e implica um trabalho bem pesado, para “bater a massa” e transportar tudo em pesadas bacias. Algumas das trabalhadoras tinham braços dignos de uma padeira de Aljubarrota!
Dizem que é necessário estar de bom humor, senão a massa não cresce. Mas, pelo que vi, é essencial força de braços e experiência acumulada. Gostei também de perceber o projeto de valorização dos resíduos, que se traduz na produção de sabão e carvão, a partir dos refugos.
O que visitar nos arredores de Korogho
O Monte Korogho é uma atração emblemática, símbolo e guardião ancestral da cidade. Basta uma caminhada de cerca de 25 minutos para desfrutar de uma vista panorâmica da região.
Outros pequenos montes rodeiam a cidade e, em alguns deles, existem pedreiras de granito com décadas. Há quem os descreva como “lugares de beleza crua”, mas convenhamos, não há muita beleza em ver o desgaste físico a que os trabalhadores (a maioria mulheres) são sujeitos, partindo pedra sem ajuda de maquinaria.
A aldeia de Kapélé
A poucos quilómetros do centro de Korogho, a aldeia de Kapélé é conhecida pelas suas contas feitas de barro recolhido no leito do rio próximo. As mulheres descobriram o uso deste tipo de conta como suporte para fiar algodão, mas foram os homens que as tornaram peças decorativas.
Cada conta é moldada por mãos untadas com manteiga de karité, em seguida, perfurada com um pau de bambu e cozida. As contas são depois pintadas à mão, usando uma pena de galinha. O artesão apoia o bambu no pé (na origem de peitos de pé calejados), ou entre dois dedos, e gira-o com destreza, para criar lindos efeitos.
A natureza providencia todos os pigmentos, exceto o azul: o branco é obtido do caulim, o verde é composto por folhas trituradas de kinkéliba (arbusto característico da África Ocidental), e o vermelho feito a partir de jovens folhas de teca.
Depois de secas e envernizadas, as contas transformam-se em peças decorativas, colares e pulseiras resistentes, ainda que um pouco pesados, e seguem para a loja da aldeia ou para outros mercados nacionais, incluindo de Abidjan.
#Nota: o nosso vídeo sobre a aldeia de Kapélé tornou-se viral no Tik Tok.
Os tecelões de Waraniéné ou Ouaranién
Nos arredores existe outra aldeia interessante: Waraniéné ou wakatchinnin, que no dialeto Sénoufo significa “não é feitiço de alguém”. A aldeia é habitada por Sénoufo (animistas) e Dioula (muçulmanos), sendo os últimos tecelões.
Como no resto da África Ocidental, a atividade é tradicionalmente masculina. Longas tiras de tecido, de 12 a 20 cm de largura, são cosidas, para se transformarem em cobertores, toalhas de mesa, roupa e acessórios. A arte passa de pais para filhos, cabendo às mulheres fiar, cozer e aplicar crochet nas peças, por exemplo, nas mangas e golas dos vestidos.
Alguns padrões, com nomes evocativos como dentes de pantera ou casca de abacaxi, estão relacionados com acontecimentos específicos. Há um padrão apropriado para festas de iniciação e outro para casamento. No entanto, os tecelões têm vindo a diversificar padrões e os compradores, desconhecedores dos costumes locais, escolhem com base no gosto pessoal.
A dança Boloye (ou da pantera)
A dança Boloye, também conhecida como dança da pantera, foi a experiência mais emocionante da viagem a Korhogo. Diz a lenda que a dança foi iniciada por um ancestral Fodonon que inventou o boloye num momento de tédio, a partir de uma cabaça, peles de animais de chocalhos. Waraniéné terá sido a primeira aldeia a possuir o instrumento musical, mas hoje várias outras os utilizam, em casamentos e funerais, ou até para chamar a chuva.
Profundamente enraizada na cultura local, apenas iniciados da floresta sagrada estão autorizados a vestir roupas de pantera – animal muito simbólico para os Sénoufo – e a participar nesta dança. Os dançarinos, entre oito e quinze anos, li algures, dançam e saltam energicamente, conduzidos pelo ritmo dos músicos e por algo que não se ouve, mas se sente.
O chão de terra vermelha é previamente molhado para que as acrobacias das panteras, dignas de circo, não levantem pó. A aldeia umedece, numa comunhão que roça ao transe. O sangue acelera, à medida dos passos e da música. Quando tudo termina, dou conta que estive a suster a respiração e sou invadida por um sentimento de gratidão.
#Nota: espreite o vídeo sobre a dança da pantera no nosso instagram.
A rocha sagrada de Chien Lo
A apenas 10 minutos de Korhogo, os rochedos de Chien Lo, Shien Low ou outra designação parecida (o que dificulta a sua busca, no google maps), é um dos locais de culto animista da região. As pessoas vão ali – independentemente da religião que professam – para que o génio da rocha atenda as suas orações e os proteja de mau-olhado.
Para que os desejos sejam atendidos, os fiéis devem oferecer um sacrifício, que será morto por um dos “homens da rocha”, intermediário entre a terra e o ente que ali habita. A galinha é abatida contra a rocha e o sangue do animal derramado como oferenda enquanto se fazem invocações, fixando uma pena e um pouco de carne na pedra.
Para quem não fica entusiasmado com a ideia de ver uma cabeça ser cortada, ou simplesmente não tem os meios necessários, é possível fazer um sacrifício mais pequeno recomendado pelos fetichistas da aldeia. Algumas nozes de kola, ou até dinheiro, podem resolver o problema, embora, teoricamente, quanto maior o sacrifício, maior a probabilidade de os desejos serem atendidos.
O processo é acompanhado por videntes, instaladas junto à rocha, que lançam búzios.
Ainda na região de Poro
Os feiticeiros de Niofoin
Outro lugar com uma energia forte fica a 50 km de Korhogo e possui as mais belas cabanas de feiticeiros da África Ocidental. A vila de Niofoin caracteriza-se por uma comunidade onde a poligamia persiste, com as mulheres a ocuparem as casinhas redondas e os homens as casas quadradas.
No meio da aldeia, destacam-se algumas estruturas. Em primeiro lugar, uma espécie de pérgula onde os jovens iniciados colocam ramos de árvore, que depois se queimam nos rituais da aldeia. Mas sãos as “cases fetiche”, as casas dos feiticeiros, de arquitetura e decoração peculiar, que deram fama ao lugar.
Apenas os iniciados podem entrar; nós nem nos atrevemos a tocar nas paredes, não fosse o diabo tecê-las e acabarmos transformados em sapos. À porta veem-se coleiras de cães sacrificados, que se dizem possuir qualidades curativas e, a toda a volta, figuras humanas e animais esculpidas em argila, em especial cobras.
A aldeia cobra um valor simbólico pela visita, mas o ideal é levar um guia, que não só trata do pagamento e das ofertas de sabão para as senhoras, como explica os mistérios do lugar.
Os tecidos pintados de Fakaha
A 30 km de Korhogo, mas na direção oposta a Niofoin, encontra as pinturas encantadoras sobre tapeçaria da aldeia de Fakaha. As mulheres tecem o algodão naturalmente bege, enquanto os homens usam tintas naturais para as embelezar, uma tradição artesanal histórica que se diz ter inspirado Picasso, após a sua visita à região.
Inicialmente feitos nas paredes para decorar as casas, os desenhos passaram para telas de algodão na década de 1940, tornando-se famosas durante o Dia da Independência de 1965, comemorado naquele ano em Korhogo. “As avós fiam algodão, os pais tecem e nós pintamos.” Aqui as memórias pesam menos que os sonhos…
Hoje, as toiles ocupam algumas dezenas de artistas, todos do sexo masculino, que alimentam o mito de que estas pinturas inspiraram fortemente o autor de Guernica. Inclusive, é-lhe atribuída uma pintura guardada na aldeia. Um viajante espanhol, que visitou a aldeia em 2020, escreveu o livro “Fakaha. Os pintores florestais de Pablo Picasso”, que conta a viagem imaginária do pintor desde Málaga até estas terras.
Mesquitas de Kong
Poderá ainda aproveitar esta viagem para conhecer a grande mesquita Kong (a cerca de 170 km de Korogho), de estilo neo-sudanês, que integra um conjunto de oito templos classificados como património mundial pela UNESCO em 2021.
São elas as mesquitas de Tengréla, Kouto, Sorobango, Samatiguila, Nambira, Kong e Kaouara, todas construídas em terra, com estruturas salientes, contrafortes verticais coroados com cerâmica ou ovos de avestruz e minaretes em forma de pirâmide truncada.
Símbolo mais antigo da islamização do norte da Costa do Marfim, estas mesquitas tiveram origem no Império do Mali e apresentam um estilo exclusivo da região de savana da África Ocidental desenvolvido entre os séculos XI e XIX, quando mercadores e estudiosos islâmicos se espalharam para o sul, estendendo as rotas comerciais transsaarianas.
A mesquita de Kong manteve a arquitetura intacta até um restauro inadequado em 1978 que descaracterizou um pouco o edifício.
#Nota: quando conseguir visitar as mesquitas de Kong, atualizarei este post
Dicas úteis para visitar Korogho
Quando visitar
Com um clima mais seco do que Abidjan (de savana), é preferível visitar a região de Korogho durante a época seca, entre novembro e maio. Até porque as chuvas intensas podem traduzir-se em estradas cortadas ou inundações, que dificultaram bastante a viagem.
Como chegar
A maior cidade do norte da Costa do Marfim fica a 635 km de Abidjan, sendo servida de aeroporto. A Air Côte d’Ivoire mantém voos domésticos regulares a partir de Abidjan, sendo ainda possível chegar de carro, o que representa cerca de 7 horas de viagem.
A estrada até Bouaké é bastante boa (autoestrada), enquanto o troço Bouaké-Korogho, embora esteja num estado razoável, é mais lento, em resultado de vias com uma única faixa para cada lado e lombas de redução de velocidade bastante altas, junto a várias localidades.
Hospedagem em Korogho
A cidade possui várias unidades hoteleiras, mas nem todas têm uma qualidade aceitável, para os padrões europeus. Os mais recomendados são o Hotel Printemps Mont Korogho **** (onde fiquei), o Hotel Rose Blanche *** ou o Hotel des Savanes ****.
5 Comentários
Nossa é muita cultura, muita coisa linda e interessante. Amei seu post demais, muito rico.
Que bom que visitou Korogho, apesar das recomendações de segurança contrárias. Fiquei fascinada com o seu relato, com uma cultura tão diversa. Precisamos abrir nossos olhos (e alma) para fora do padrão europeu. Obrigada por compartilhar a sua experiência.
Visitar a Costa do Marfim é um sonho que ainda não tirei do papel. Gostei muito das dicas de Korogho, certamente será um dos lugares que irei conhecer. Boas dicas
Vou ter de voltar à costa do Marfim? 🙂
Em janeiro recebo um grupo 🙂