Atualizado em 15 Abril, 2021

Como é que um bolo em forma de pénis se tornou o símbolo, até a mascote, de uma cidade ultraconservadora? Hoje visitamos Amarante, em busca dos “quilhõezinhos de São Gonçalo”

O Tâmega empresta um tom bucólico à cidade, ali a meia hora do Porto. As lânguidas margens do aéreo rio, para recordar o verso de Teixeira de Pascoaes que aludia à neblina que dele se ergue, estão belamente emolduradas por elegantes choupos.

Reza a história que foi São Gonçalo, em 1250, que mandou construir uma travessia entre as duas margens. Uma ponte que se desmoronou no século XVIII devido às cheias, que foi recuperada e, entretanto, assistiu a dramáticos episódios da História. Foi ali que o exército português resistiu ao invasor napoleónico, que acabou por ocupar e incendiar a cidade (1809). Ali se deu também um embate decisivo da guerra civil, 25 anos depois.

Mas nada disso nos ocupa o espírito enquanto atravessamos a ponte, conquistados pelo majestoso Convento de S. Gonçalo no fim do caminho. O olhar pousa na Varanda dos Reis, com as estátuas dos quatro monarcas que reinaram durante os 200 anos da construção da igreja. São eles D. Sebastião, D. João III, D. Catarina e D. Filipe I.

O religioso infunde carácter à cidade de Amarante, que nasceu com a chegada de um certo Gonçalo, no século XIII. Dominicano e evangelizador no Médio Oriente, a sua fama de santidade atraiu gente e peregrinos, que se desviavam do caminho de Santiago para o ouvirem.

Os conventos e mosteiros multiplicaram-se na região – incluindo o belo Mosteiro do Salvador de Travanca, que visitámos recentemente – e São Gonçalo, embora não fosse amarantino, tornou-se uma figura maior da cidade.

S. Gonçalo casamenteiro

No recolhimento da igreja, junto ao altar, repousa o túmulo deste Gonçalo que o Vaticano chama de beato, mas que o povo decidiu elevar a santo. Obviamente, ali mora a sua imagem que é alvo de particular atenção das solteironas mais velhas. Reza a lenda que quem puxar o seu cordão encontrará marido no prazo de um ano. Outros dizem que é preciso tocar no túmulo…

São Gonçalo de Amarante
Casai-me que bem podeis
Já tenho teias de aranha
Naquilo que vós sabeis 

Esta tradição casamenteira está intimamente ligada aos doces fálicos, enquanto representação icónica associada às preces e rituais para arranjar noivo. Não se sabe muito bem como começou tal aura prodigiosa, mas causa alguma apreensão às raparigas mais novas, de cujas queixas ficou a célebre quadra, cantada na romaria dos primeiros dias de Junho:

São Gonçalo de Amarante 
Casamenteiro das velhas 
Porque não casais as novas 
 Que mal vos fizeram elas?

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As ruínas do Solar dos Magalhães recordam a invasão napoleónica.

Longe vão os tempos em que os quilhõezinhos de S. Gonçalo se ofereciam às escondidas (durante o Estado Novo foram considerados obscenos e um atentado à moral) ou se vendiam apenas na rua durante as romarias. Pastelarias como a Confeitaria Tinoca apropriaram-se do doce, elevando-o à categoria gourmet, e as lojas de artesanato transformaram-no em souvenirs.

Na origem do símbolo poderão estar rituais pagãos, entretanto cristianizados. Certo é que os quilhõezinhos sobreviveram e continuam a arrancar gargalhadas aos turistas, sobretudo os de dimensões ousadas, já que alguns chegam a atingir um metro.

Outras visitas – Museu Amadeo Souza-Cardoso

Anexo ao Convento de S. Gonçalo, este museu municipal criado em 1947 expõe obras de artistas e escritores amarantinos. A exposição permanente reúne obras de pintura e escultura de Arte Portuguesa Moderna, onde se destaca Amadeo de Souza-Cardoso. Este foi um dos maiores pintores modernistas portugueses.

Além de Souza-Cardoso (que tem um avião da TAP com o seu nome), a lista de prodígios nascidos em Amarante inclui o poeta Teixeira de Pascoaes, que aqui ganhou a reverência pela natureza que caracteriza a sua obra, Agustina Bessa-Luís, uma das mais respeitadas escritoras portuguesas, bem como os pintores António Carneiro e Acácio Lino.

Museu Amadeo de Souza-Cardoso: site | terça a domingo (excepto feriados) 10h-12h30, 14h-17h30 | Bilhete: 1€ (adulto) grátis (até aos 15 anos)

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