Atualizado em 20 Abril, 2021

Dona Ana de Sousa podia ser uma pacata dona de casa, esposa de um qualquer colonizador a tentar a sorte pelas Áfricas. Mas não foi. Na verdade, é mais conhecida como rainha Ginga (1583-1663), cujo título real em quimbundo, “Ngola”, terá dado origem ao nome de um país.

A monarca que guerreou e depois fez alianças com os portugueses é uma figura central da história angolana no século XVII.

Num romance histórico recentemente lançado, Ginga é descrita como uma líder firme, exótica e carismática. Preocupada com o despovoamento do reino, devido aos recorrentes sequestros de pessoas para serem vendidas no Brasil, Ginga é também senhora de inúmeros escravos, mas condena os portugueses pelo tratamento desumano ao qual submetem os seus…

Hoje viajamos por Angola, ainda antes de o ser, conduzidos por José Eduardo Agualusa. Um fabulista branco nascido no Huambo (quando Angola ainda era uma colónia), entre os grandes da literatura lusófona. Agualusa, que sempre quis escrever esta história mas foi adiando o projecto com receio do tamanho da empreitada, lançou o livro do alto da maturidade que os 50 e tal anos dão.

Quem conta esta história, entre ficção e realidade, é Francisco José da Santa Cruz, um padre brasileiro profundamente abalado na sua fé, com espessa melena de índio que herdou de sua mãe, juntamente com a tendência para a melancolia.

O padre mestiço, secretário da famosa rainha negra, desfia um enredo intrincado. Uma mulher que se tornou rainha após envenenar o próprio irmão, porque este não tomava medidas drásticas para impedir os avanços dos portugueses. Que para isso, formou uma aliança com os guerreiros Jaga – uma espécie de espartanos de África – e, décadas mais tarde, com os holandeses, que apoiou aquando da ocupação de Luanda.

Pelo meio ainda se aproximou dos portugueses, convertendo-se ao catolicismo, que achavam que a “inaudita” inteligência desta mulher, ainda por cima negra. “Devia ser considerada inspiração do maligno e, portanto, matéria da competência do Santo Ofício” (pp. 37-38).

Católica ou não, ela nunca abandonou os seus velhos hábitos que, com certeza, causavam muita estranheza. Uma mulher que se veste de homem, que teima em ser tratada como rei e mantém um harém de 50 homens, a quem tratava como as “minhas mulheres” e os vestia como tal.

A personagem tem sido “instrumentalizada” por muitos. O Marquês de Sade encarava-a como exemplo de devassidão; activistas americanos apontam-na como um símbolo gay (porque tratava os seus homens por mulheres? OMG); e políticos angolanos, como uma heroína nacionalista. A ponto de lhe atribuírem uma pegada gigante, marcada nas pedras negras de Pungo Andongo, na província de Malanje.

Estátua em bronze da rainha, à entrada do Forte de S. Miguel, em Luanda.
Estátua em bronze da rainha no Forte de S. Miguel, em Luanda.
O que dizem ser a pegada da rainha Ginga, em Pungo Andongo, província de Malanje
O que dizem ser a pegada da rainha Ginga, em Pungo Andongo, província de Malanje

A Rainha Ginga e de como os africanos inventaram o mundo não é uma simples biografia da destemida rainha. Propõe-se retratar uma época histórica, fascinante, quando portugueses e holandeses (entre outras potências) disputavam territórios de África e da América do Sul.

Não me interpretem mal, a obra proporciona uma leitura agradável, pejada de personagens divertidas. Um padre que acaba perseguido pela Inquisição, um judeu com nome de anjo, um príncipe do Reino de Ndongo que rapta a mulher de um oficial holandês. Até um pirata com uma perna de pau que existiu de verdade (Cornelis Jol), provando que a realidade é por vezes mais inverosímil do que a ficção.

Mas deixa um travo a pouco. Esta história de 278 páginas bem arejadas, merecia o dobro do tamanho. Talvez assim se tornasse um marco na literatura lusófona, como Cem Anos de Solidão se tornou no mundo literário latino-americano.